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A geladeira

Por Walcyr Carrasco
Atualizado em 5 dez 2016, 19h46 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

O maior sonho de minha mãe era ter uma geladeira. Morávamos em uma casinha de três cômodos atrás de seu bazar, com poucos móveis e, de eletrodoméstico, somente um rádio que meu próprio pai montara. Nossa situação não era muito diferente da da maioria dos vizinhos, em Marília, no interior de São Paulo, onde eu vivia. Somente a família do médico, na casa ao lado da nossa, possuía o que considerávamos uma mansão. E ostentava na cozinha uma enorme geladeira.

Quando brincava com seu filho, eu tomava com admiração e temor um copo d’água gelada. Ou limonada com cubos de gelo flutuantes. Termos uma geladeira parecia um desejo inatingível. Pode soar como exagero. Eu mesmo me estranho quando falo da minha infância. Passei dos 50 anos. Mas, diante das facilidades tecnológicas atuais, às vezes me sinto como vindo de um passado secular. Geladeiras tornaram-se banais. Quando menino, não era tão fácil comprá-las.

Meu pai era ferroviário. Próximo a um dia das mães, resolveu comprar a geladeira. Eu o acompanhei à principal loja da cidade. Ele escolheu o modelo mais simples, em formato de caixa retangular, com uma tampa que se abria por cima. Abriu um crediário, a ser quitado em dez prestações. A entrega foi de surpresa. Feliz como uma menina, mamãe abria e fechava a tampa, sem acreditar. No jantar, eu, meu irmão Airton, papai e mamãe pudemos tomar a nossa própria água gelada. Foi uma alegria inesquecível. Maior do que a que senti mais tarde em festas requintadas. A memória ainda me traz um eco de nossas risadas.

Havia um problema: não tínhamos o que colocar dentro da geladeira. Refrigerante, comprávamos apenas em aniversários ou se tinha parente em casa. Carne e peixe eram adquiridos no dia, quando era o caso. De fruta só havia um cacho de bananas. Mamãe o pôs lá dentro. Durante o resto da noite, de quando em quando abríamos a geladeira para sentir o frio, ver as forminhas de gelo e as bananas. No dia seguinte, a mulher do médico explicou:

– Bananas não se guardam em geladeira.

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Decepcionada, mamãe as retirou. Banana era sua fruta preferida! Botou uma sobrinha de arroz e ovos. De repente, a geladeira parecia um luxo inútil! Pedi:

– Faz sorvete?!

Em seus livros de culinária, mamãe capturou uma receita simples. Era uma espécie de mingau, colocado em forminhas, com consistência de gelo. Mas era feito em casa! Sempre aconselhada pela mulher do médico, mamãe aprendeu a deixar alguns alimentos preparados para a semana. Quando o movimento do bazar diminuía, ela me botava no balcão e esquentava o almoço. Gabava-se para meu pai:

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– Foi o presente mais útil que você me deu!

Ele sorria orgulhoso.

A geladeira ficou conosco muitos anos. (Naquela época, os eletrodomésticos eram feitos para durar.) Foi trocada por um modelo de porta vertical, quando tivemos uma melhoria financeira.

Ao voltar à minha cidade, depois de quarenta anos, fiquei surpreso. A casinha onde morava tinha sido derrubada, junto com a do vizinho de cima. Cedera lugar a um restaurante popular. A residência do médico está longe da mansão de minhas lembranças. É ocupada por um chaveiro. A estrada de ferro não funciona mais e os trilhos cobriram-se de grama. Mais que tudo: minha forma de ver as coisas mudou. Eu me tornei um ser humano mais complexo e sinto que poderia ter o coração mais aberto. Tanta coisa perdeu o encantamento! Senti vontade de recuperar as pequenas grandes emoções. Como a provocada pela simples geladeira que um dia fez brilhar os olhos da minha mãe.

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