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As histórias de pessoas que perderam tudo em apostas on-line e lutam para retomar a vida

Grupos de apoio, como Jogadores Anônimos e Jog-Anon, auxiliam apostadores e familiares

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
1 nov 2024, 08h28
Apostador em recuperação: facilidade para jogar em qualquer lugar
Apostador em recuperação: facilidade para jogar em qualquer lugar (Roberto Setton/Veja SP)
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Com ampla publicidade, seja estampando camisas dos principais clubes de futebol do país ou em páginas de influenciadores com milhões de seguidores, o mercado de apostas digitais cresce a passos largos, potencializado pelo aparecimento recente de milhares de empresas do tipo “bet” (onde se tenta acertar previamente o resultado de uma partida, por exemplo) e “jogo do tigrinho” (que reproduz um caça-níqueis), só para citar as mais populares.

Nos últimos cinco anos, o número de pessoas que arriscam algum tipo de palpite on-line, nas mais variadas plataformas e modalidade de jogos, atingiu a marca alarmante de 52 milhões — praticamente a população da Argentina e do Paraguai juntas. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva apontou que 86% dos apostadores possuem dívidas e que seis em cada dez jogadores estão com o nome sujo nos órgãos de proteção ao crédito.

Trata-se de uma “epidemia” de adeptos dos jogos de azar na internet. E os transtornos financeiros são apenas uma das consequências.

Jogador durante sessão do J.A.: contagem em horas, dias, meses e anos
Jogador durante sessão do J. A.: contagem em horas, dias, meses e anos (Roberto Setton/Veja SP)

Há três anos, seis meses e dezoito dias (completados em 10 de outubro) sem jogar, o empresário Reinaldo (nome fictício) envolveu toda a família em seu vício em apostas. Antes do boom das bets, a partir de 2018, seu negócio eram máquinas caça-níquel, bingos clandestinos e jogo do bicho, entre outros.

“Faz mais de vinte anos que vivo pagando dívidas de jogos. Já usei o nome da minha mãe, da esposa e de outros familiares para fazer empréstimos, mas o buraco nunca é fechado”, afirma Reinaldo, durante uma sessão do Jogadores Anônimos, entidade composta por homens e mulheres que compartilham suas histórias com o vício. “Por ora minha vela está apagada, mas, se acender, ela explode.”

Nas últimas semanas, a reportagem de Vejinha acompanhou diversas sessões, presenciais e on-line, do Jogadores Anônimos. Seguindo conceitos parecidos com os dos Alcoólicos Anônimos, o J.A., como é chamado entre os integrantes, utiliza a cartilha dos “doze passos de recuperação” e garante o anonimato de seus membros e visitantes. Não há cobrança de mensalidades e cada um que vai ao púlpito, geralmente uma cadeira e uma mesa, começa falando sobre quantos dias (ou horas) está longe do vício.

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Reunião de Jogadores Anônimos: sala sempre cheia
Reunião de Jogadores Anônimos: sala sempre cheia (Roberto Setton/Veja SP)

“Fazemos as pessoas se autoconhecerem e ouvirem com atenção as histórias dos outros, pois elas servem de inspiração”, afirma Bernardo C., outro membro do J.A. Após 23 anos sem jogar (“Já passei 72 horas dentro de um bingo e só saía de lá para sacar mais dinheiro”), Bernardo é modelo para os mais novos, que, aliás, não param de chegar. “Nunca vi nada igual. Hoje eles estão em situação muito pior do que eu estive, pois o jogo está na palma da mão de todos. O marido ou a esposa fala que está vendo vídeo na internet, mas na verdade está apostando e perdendo o dinheiro da família”, diz.

Foi o que aconteceu com um jogador de 33 anos que está há um ano e três meses “limpo”.

“Como eu não conseguia esperar um, dois dias para saber o resultado de um jogo de futebol, por exemplo, eu me trancava no banheiro de casa e apostava em partidas rápidas, como pingue-pongue, que se desenrolavam em poucos minutos”, conta o rapaz, que obteve ajuda da mãe para quitar as dívidas com um agiota que bateu à sua porta. “Foi minha salvação, mas houve a condição de que eu deveria buscar ajuda e foi o que fizemos. Eu devia 80 000 reais no total e ainda levará alguns anos para eu me livrar de tudo isso.”

Palestra no J. A.: auxílio em conjunto
Palestra no J. A.: auxílio em conjunto (Roberto Setton/Veja SP)
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O papel da família em situações como as relatadas é importante, tanto na compreensão do problema, quanto na busca de auxílio externo. Mas, em muitos casos, ela própria também necessita de cuidado especial. “Como o efeito do jogo é silencioso, não deixa o olho vermelho, como no caso das drogas, o familiar, na maioria das vezes, não entende que o parente recluso, que anda sumindo e mentindo, está afundado em apostas. Eu mesma achei que meu marido tinha outra família”, conta Mácia F., voluntária de uma espécie de braço do Jogadores Anônimos, o Jog-Anon, voltado para familiares de apostadores compulsivos.

Com reuniões on-line e presenciais, a entidade também viu explodir o número de pessoas que buscam ajuda. “Antes da pandemia, tínhamos reuniões com dez, doze pessoas. Hoje aparecem 40, 50 de cada vez” (os contatos das duas entidades estão no final da reportagem).

Aviso em sala de sessão do J.A.
Aviso em sala de sessão do J.A. (Roberto Setton/Veja SP)

Não é só nas entidades de ajuda comportamental que a procura por atenção sofre uma escalada. No Ambulatório do Jogo Patológico do Hospital das Clínicas de São Paulo, a fila de espera para tratamento médico está em mais de um ano e meio. “Nossa capacidade de oferta foi excedida pela demanda, assim como ocorreu nos anos 1990, quando os bingos foram legalizados”, relata o psiquiatra Hermano Tavares, coordenador do grupo do HC.

Quem consegue esperar chegar a vez, passa por três tipos de avaliação: psiquiátrica, psicológica e neuropsicológica. O próximo passo é o uso de medicamentos específicos para a compulsão. Em geral, o tratamento dura entre dezoito e 24 meses. “Estamos estressados, tentamos direcionar as demandas, mas a rede pública, exceto pelo nosso centro, não tem profissionais para tratar o vício em jogo”, queixa-se Tavares.

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Psiquiatra Hermano Tavares: um ano e meio de fila
Psiquiatra Hermano Tavares: um ano e meio de fila (Roberto Setton/Veja SP)

De certa forma, a preocupação do psiquiatra do HC com a falta de mão de obra para cuidar dos efeitos do vício em jogos passa ao largo do que o governo federal estuda como prioridade.

No mês passado, o Ministério da Fazenda publicou uma série de portarias para regulamentar o segmento de apostas, autorizado a funcionar desde 2018, na gestão de Michel Temer, mas sem regras estabelecidas até então. Entre as principais medidas estão a proibição de que sites ilegais — que não pagaram a outorga de 30 milhões de reais para poderem atuar no país — mantenham páginas abertas no Brasil a partir de 1º de janeiro de 2025. Até meados de outubro, pouco mais de 200 empresas foram legalizadas e mais de 2 000 foram consideradas ilegais.

Cartilha do J. A.: doze passos
Cartilha do J. A.: doze passos (Roberto Setton/Veja SP)

Dentro da chamada “política de jogo saudável”, o Ministério da Fazenda também estuda medidas como o disciplinamento da publicidade e a proibição do uso de cartão de crédito como meio de pagamento. Recentemente, o Banco Central informou que beneficiários do Bolsa Família gastaram, em agosto passado, 3 bilhões de reais com o mercado de apostas. Após o anúncio, o governo federal disse que vai restringir a utilização do cartão social para esse fim.

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Enquanto a gestão Lula estuda medidas para conter a proliferação de efeitos maléficos de bets e afins, ainda é possível fazer apostas sem passar por filtros básicos, como a confirmação de dados pessoais. Nos últimos dias, a reportagem fez diversos cadastros em sites que deverão sair do ar em janeiro usando nomes e telefones fictícios. O caminho seguinte seria fazer o Pix para obter o crédito para apostar.

Com tanta facilidade para jogar (e perder), a jornada dos apostadores compulsivos contra o vício vai ficando cada vez mais longa e árdua. Resta saber se as ações prometidas pelo governo serão capazes de acabar com a epidemia em curso.

Onde procurar ajuda

– Jogadores Anônimos – jogadoresanonimos.com.br

WhatsApp: (11) 99571-6942

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E-mail: jogadoresanonimos saopaulo@gmail.com

– Jog-Anon – jog-anon.com.br

WhatsApp: (11) 99158-7203

E-mail: contato.joganon@gmail.com

 

 

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Publicado em VEJA São Paulo de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916

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