Os planos para o novo Pacaembu, concedido à iniciativa privada
Com menos futebol e mais eventos, estádio emblemático ganhará ares de centro comercial para voltar a atrair público
Inaugurado em 1940, em um bairro então pouco habitado, o Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, que foi palco de seis jogos na Copa do Mundo de 1950, viverá sua mais importante transformação em oito décadas. Após a assinatura de um contrato, prevista para ocorrer até setembro (o prazo inicial era julho), o espaço, composto de uma piscina olímpica, duas quadras de tênis e um ginásio poliesportivo, além do campo, passará a ser administrado pelo Consórcio Patrimônio SP por 35 anos. O grupo, formado pelas empresas Progen e Savona Fundos de Investimentos, pagará 111 milhões de reais à prefeitura e promete investir outros 300 milhões de reais no complexo.
Para gerar atratividade financeira, a empreitada do deficitário centro esportivo prevê a demolição do tobogã, arquibancada inaugurada no início da década de 70 em substituição à histórica concha acústica. No seu lugar será erguido um prédio de cinco andares (mais quatro subsolos), com 44 000 metros quadrados de área construída. O projeto é da arquiteta Sol Camacho, do escritório Raddar. Do nível do gramado para cima, os dois primeiros pavimentos serão alugados para escritórios e firmas de serviços, como bares e restaurantes. A ideia é buscar companhias de coworking e empresas da economia criativa. Na alimentação, a expectativa é atrair estabelecimentos de vários segmentos e preços. “Hoje o Pacaembu é um local de passagem. Queremos trazer 5 000 pessoas por dia e transformá- lo em um destino agradável”, afirma o administrador de empresas Eduardo Barella, CEO da Patrimônio SP.
O 3º piso contará com uma passarela de ligação entre as ruas Itápolis e Desembargador Paulo Passaláqua. Esse espaço será destinado à livre circulação de pedestres, que terão acesso a outras áreas públicas localizadas no 4º andar e no térreo. Nesse último, de frente para o gramado, haverá um anfiteatro de madeira que reinventará parte da concha acústica. Esse espaço terá uma esplanada de 3 000 metros quadrados. Outra aposta é criar no subsolo um centro de convenções para até 2 000 pessoas e ampliar o uso do complexo. Haverá ainda três andares de estacionamento, com 450 vagas. A Praça Charles Miller e o Museu do Futebol ficaram de fora da concessão.
Quando o novo Pacaembu estiver pronto, daqui a dois anos, o desafio do consórcio será atrair um bom volume de negócios. Nessa seara, o gramado, que já recebeu Pelé, Leônidas da Silva, Rivellino e Ademir da Guia, terá função secundária. “Estamos prevendo quinze jogos de futebol profissional por ano”, afirma Barella, que reduzirá a capacidade do estádio de 40 000 para 26 000 lugares. “Em compensação, faremos 300 eventos anuais nos demais espaços, como casamentos, apresentações musicais, festas infantis e lançamentos de marcas.”
Por essa visão, a derrubada do tobogã não faria diferença para a prática esportiva profissional. Mas é nesse ponto que a turma contrária à concessão mira para tentar melar o negócio. “As duas resoluções de tombamento do estádio são posteriores à construção daquela arquibancada específica, portanto a autorização para sua derrubada é um sofisma que será discutido na Justiça”, afirma Flávio de Campos, professor de história da Universidade de São Paulo (USP), referindo- se aos dois pareceres do Condephaat (estadual) e do Conpresp (municipal), órgãos de patrimônio que deram aval para a destruição do tobogã. Na semana retrasada, Campos e um grupo de frequentadores do clube, ligados à Associação Viva Pacaembu, entraram com duas representações no Ministério Público (MP) com a alegação de que a concessão fere os tombamentos e vai prejudicar os usuários.
Após a reabertura do centro esportivo, apenas a piscina e as pistas de corrida serão gratuitas e destinadas ao público em geral (das 8 às 17 horas). O restante do complexo será voltado para o esportista pagante, como já ocorre parcialmente hoje. Fora das aulas regulares, para alugar a quadra de tênis, por exemplo, o custo é de cerca de 100 reais por hora. “Em nenhum momento fomos chamados e não sabemos para onde iremos depois que o espaço for fechado”, diz a aposentada Denise Boschetti, de 60 anos, moradora da Vila Buarque e aluna de cursos como alongamento, pilates e ioga, todos oferecidos de graça pela prefeitura. Nessas aulas, a frequência não passa de trinta alunos por dia, muito por causa da falta de professores (são apenas sete, para doze modalidades). “Meu filho fez aulas de tênis durante muitos anos. Agora vão acabar com tudo”, ela lamenta.
Apesar do discurso, o centro esportivo costuma ficar às moscas mesmo em dias de calor. Diariamente, a média é de 300 frequentadores. No dia 27 de junho, uma quinta-feira de bastante sol, apenas treze pessoas usavam a piscina aquecida à tarde. Na arquibancada da quadra de tênis descoberta, duas jovens estendiam suas esteiras para pegar um bronze. Questionado sobre o fim das gratuidades do Pacaembu, o prefeito Bruno Covas afirmou que a cidade deixará de gastar 315 milhões de reais e no mesmo período vai receber 87 milhões de reais com impostos gerados pela nova concessão. “Prefiro usar esses recursos em Perus ou em Cidade Tiradentes”, compara o tucano.
A queixa dos parcos frequentadores é reverberada pela pequena mas barulhenta Associação Viva Pacaembu. Criada há dezoito anos, recorreu à Justiça inúmeras vezes. A última foi para tentar cancelar a concessão, ainda sem sucesso. Mas não foi sempre assim. Desde 2005, quando a entidade obteve uma liminar que proíbe espetáculos no estádio, o local deixou de ser palco de grandes shows. Por lá já tocaram Rolling Stones, Iron Maiden, Paul McCartney e Pearl Jam (o último, em dezembro daquele mesmo ano). Com o fim das apresentações musicais, as queixas dos vizinhos se concentraram em eventos que atraem muito público. Em junho, quando o estádio recebeu 30 000 pessoas para a final da Taça das Favelas, as ruas do entorno ficaram intransitáveis. “Os mais de 200 ônibus disponibilizados pela prefeitura inundaram as nossas ruas”, conta a aposentada Cecilia Turazzi, moradora do bairro há sessenta anos.
Idealizadora e fundadora da Viva Pacaembu, a também aposentada Iênides Benfati, de 73 anos, virou uma espécie de pedra no sapato dos últimos governantes. Costumava manter em uma agenda o número do celular de todos os prefeitos e chegou a receber um deles em sua casa, para um café. Certa vez, quando percebeu que um secretário não deu a devida atenção para uma demanda geral do bairro, ela ligou para o telefone pessoal do chefe da cidade e no dia seguinte a resposta (positiva) estava publicada no Diário Oficial.
“Mas faz dois anos que deixaram de nos atender”, afirma, referindo-se a João Doria e Bruno Covas. De fora da direção da associação, mas uma espécie de embaixadora da entidade, Iênides agora é alvo da queixa de um vizinho, por causa dos cantos matinais de um galo. O bicho morava em seu quintal junto com uma dúzia de galinhas caipiras, mas temporariamente foi colocado em uma área distante da residência. Seu futuro é incerto. “Tanta coisa para o morador reclamar, e ele fala das minhas galinhas”, desdenha Iênides.
Apesar de décadas de legislação suscetível ao lobby dos 4 000 moradores, o maior termômetro da crise de popularidade do bairro é o número de imóveis vazios. Um levantamento do Grupo Zap mostra que 35% das casas do Pacaembu estão disponíveis para venda ou locação. Como comparação, o Jardim Europa tem 20% de vacância. O valor também está em queda. No Jardim América, um imóvel em um terreno de 600 metros quadrados pode sair por 9 milhões de reais. Trata-se do triplo do preço no Pacaembu, onde o metro quadrado já vale menos que em bairros como Higienópolis e Perdizes. Com tanta casa à venda, o tempo para um proprietário concluir o negócio costuma ser longo. Um exemplo ocorre na Rua Brigadeiro Melo.
Ali, um sobrado de 430 metros quadrados, em um terreno de quase 700 metros quadrados, está encalhado há dois anos. Além de ter rachaduras e infiltrações, o imóvel apresenta sinais de abandono. “Quando o interessado vê as condições da casa e descobre o seu preço (3 milhões de reais), desiste na hora”, diz o homem responsável por receber possíveis compradores, que pediu para não ser identificado. Perto dali, outra casa, de 700 metros quadrados de terreno e quase 500 metros de área construída, já completou seis anos de espera por um novo dono. Enquanto isso, o IPTU, de cerca de 40 000 reais por ano, continua correndo. “Mesmo baixando o valor em mais de 1 milhão de reais, o proprietário não consegue vender de jeito nenhum”, afirma a corretora Valentina Caran. A pedida inicial era de mais de 2,5 milhões de reais. “O Pacaembu não tem muito valor por causa do zoneamento restritivo e do tombamento. Sem falar no transtorno em dias de jogo”, completa Valentina, que reclama também das restrições da Avenida Pacaembu. Pela Lei de Zoneamento, a via comporta poucos estabelecimentos comerciais, como lojas de colchão. Restaurantes, grandes supermercados, casas de eventos e serviços públicos são vetados.
Outro exemplo de imóvel vazio tem muita história para contar. Localizado na Rua Angatuba, o Asilo dos Expostos, complexo de edifícios que pertenceu à Santa Casa e foi uma unidade da antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), está há duas décadas sem uso. Hoje o terreno, de 216 000 metros quadrados (maior que a área que abriga o Parque do Povo e o Shopping JK Iguatemi juntos), pertence à Fundação Faculdade de Medicina da USP, que (sub)utiliza o espaço para pesquisas. “Ouvimos boatos de que vão abrir um câmpus da universidade aqui, mas somos contrários”, afirma o construtor e incorporador Rodrigo Mauro, morador do entorno e diretor da Viva Pacaembu.
Na mesma rua, o tradicional Nacional Club, fundado em 1958 e instalado em uma mansão de 5 000 metros quadrados, mudou de atividade após praticamente quebrar. Em vez de ponto de encontro da aristocracia paulistana (Assis Chateaubriand e Ciccillo Matarazzo eram sócios), transformou-se em espaço para eventos e entrou na mira da associação, que quer fechá-lo. Procurado, o clube não se manifestou.
Não é a primeira vez que um novo uso do Pacaembu vira notícia. Em 1968, o arquiteto Arnaldo Martino fez um estudo para elevar sua capacidade a 100 000 pessoas. Na época, pretendia-se entregar o estádio ao Corinthians. O projeto, enviado ao então prefeito Faria Lima, previa duas arquibancadas sobrepostas, uma estrutura menor em frente à concha acústica e um estacionamento para 3 000 veículos na Praça Charles Miller. Como o dinheiro era curto, optou-se por retirar a concha acústica e construir o tobogã. “A concha tinha mais fins políticos que futebolísticos”, afirma Martino, que projetou a criticada nova estrutura. “Cada trabalho tem seu tempo. Daqui a vinte anos podem achar que este novo prédio não serve mais, derrubá-lo e fazer um belo parque.”
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 17 de julho de 2019, edição nº 2643.