Moradores do Complexo Júlio Prestes, na Cracolândia, relatam dia a dia com medo
Apesar das promessas de que a região seria revitalizada, eles afirmam viver isolados
Assim que ficou sabendo da confusão ocorrida no meio da tarde da última terça-feira (8), em que usuários de drogas promoveram arrastões e atacaram motoristas, pedestres e comerciantes na região da Cracolândia, na Luz, o analista de TI Erick Padilha (25), que estava no metrô a caminho de casa, deu meia-volta e foi para a residência da mãe, no Itaim Paulista, na Zona Leste.
Morador há seis meses do Complexo Júlio Prestes, composto de oito edifícios construídos por meio de uma parceria público-privada, entre as vias Helvétia, Dino Bueno, Barão de Piracicaba, Cleveland e Duque de Caxias, o jovem toma a decisão de não seguir para o próprio apartamento toda vez que o clima esquenta na região mais degradada da cidade. “Amanhã (na quarta) eu também não volto para lá. Se tenho medo de andar pelo bairro quando a situação está relativamente normal, imagina quando há casos como o de hoje (terça)?”, disse. Em nota, a PM afirma que foi chamada para conter tumultos, acionou um plano de contingência e que a situação foi normalizada rapidamente.
Enquanto uns têm medo de entrar, outros evitam ao máximo sair de casa. “Moro com minha mãe, de 74 anos, que antes de vir para cá fazia suas compras, ia à feira, mas aqui ela vive presa”, diz Antonio dos Santos, 53, que se mudou da Mooca para o Júlio Prestes há cinco meses. “A gente conhecia a Cracolândia pela TV, mas viver aqui é muito diferente. Ao vivo é muito pior. Da minha janela eu vejo o traficante dar troco para o viciado, vejo brigas o dia todo, pessoas sendo arrastadas para o fluxo (nome da aglomeração). Carros do IML que entram para buscar corpos são quase diários.”
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Inaugurados em abril de 2018, os conjuntos habitacionais, com prédios de doze a dezesseis andares, eram a esperança de muita gente que vive de aluguel na periferia realizar o sonho do imóvel próprio em uma área central. Para atrair os moradores, o governo do estado reformou a Praça Júlio Prestes e prometeu uma creche para 200 crianças, além de levar para o entorno a Escola de Música Tom Jobim. Os dois últimos não saíram do papel, assim como a ideia de transformar o térreo dos prédios em áreas de comércio.
“Quando fomos assinar os papéis, eles nos mostraram vídeos e falaram que não haveria a necessidade de muros no futuro. Venderam uma ideia totalmente diferente, de que acabariam com a Cracolândia. Eu já tinha ouvido falar daqui, mas não sabia que estaria na porta do prédio”, afirma Jenifer Gaspar, 26, que mora no 1º andar com o marido e dois filhos, de 3 e 1 ano. “Quando tem confronto, eles jogam rojões em cima da Guarda Civil. Nesse momento, meu filho mais velho começa a tremer, chorar e gritar. É desesperador.”
Outra habitante recém-chegada ao Júlio Prestes, que pede para não ser identificada, diz que não sabe como fará para ir com os três filhos à escola quando a pandemia acabar. “O projeto do condomínio é lindo, mas no dia a dia nossa vida é um terror. Agora com a pandemia estamos em casa, meus filhos estão fazendo aulas remotas de uma escola pública em Guarulhos, onde morávamos. Quando a quarentena acabar, como vou fazer para levar os meninos à escola, no Bom Retiro? O transporte escolar não para aqui na rua, por causa do fluxo. Como sairei com eles a pé?”
A degradação urbana da Praça Júlio Prestes começou bem antes da chegada da Cracolândia, há trinta anos. Inaugurado em 25 de janeiro de 1961, o Terminal Rodoviário da Luz transformou o bairro predominantemente residencial em uma área repleta de hotéis e hospedarias. Junto veio a prostituição. A rodoviária perdeu relevância com a inauguração do Terminal Rodoviário do Tietê, em 1982. Com isso, os antigos estabelecimentos foram entrando em decadência. O embrião da atual Cracolândia estava nascendo.
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Publicado em VEJA São Paulo de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717