Patricio Bisso, o sucesso de São Paulo
Para homenagear o ator, que morreu na segunda (14), republicamos uma capa da Vejinha de 1985
Numa homenagem no sétimo dia da morte do ator, performer, ilustrador e figurinista Patricio Bisso, a VEJINHA republica uma reportagem de capa de dezembro de 1985 na qual Ruy Castro escreve sobre as facetas do argentino. Na época, no auge de seus 28 anos, ele tornava-se uma figura célebre na noite paulistana. O rapaz debochado vivia em um apartamento de 30 metros quadrados no edifício Copan e sonhava em arrebatar uma estatueta do Oscar por O Beijo da Mulher Aranha, longa em que fez as vezes de figurinista.
Confira o texto na íntegra:
Super-Homem era famoso. Clark Kent, não. E só Miriam Lane desconfiava de que um era o outro. Os moradores do edifício Copan, por exemplo – um king-kônguico complexo de 1 800 apartamentos no centro de São Paulo –, já se habituavam a ver entrar e sair um rapaz baixo e gordinho, de cabelo preto e espetado, frequentemente vestido com um camisão florido à havaiana que lhe chegava às canelas e encobre uma invariável bermuda cáqui no verão.
Os cidadãos do Copan, habituados às mais extremas excentricidades, já nem ligam muito, mesmo quando o jovem sai ou entra carregando uma espécie de mini-arara cheia de vestidos que cairiam como luvas nos ombros de Romy Schneider em Sisi, a Imperatriz ou nos de Sarita Montiel em La Violetera.
Mal sabem eles que são vizinhos de uma galeria de ilustres “mulheres” dos anos 50 e 60, como Celly Campello, Brenda Lee, Doris Day, Evita Perón, Sonja Henie, Connie Francis, Anette Funicello ou Wanderléia. Só que todas elas na sua melhor identidade secreta: o artista Patricio Bisso, um argentino de 28 anos, com onze de Brasil. Pois é disfarçado no seu verdadeiro eu que Patricio Bisso sai todas as noites do Copan, passa por um estrambólico camarim e surge magicamente transformado no palco do teatro Sesc-Pompéia, no bairro da Lapa, em São Paulo, no seu show Louca pelo Saxofone. Um show que começou no fim de novembro, vai até o dia 22 próximo e, levando à histeria de riso cerca de 400 pessoas por sessão, é o maior sucesso da temporada na cidade. E que, mesmo assim, permite a seu astro andar pelas ruas durante o dia sem que ninguém o reconheça nem lhe peça autógrafos. Graças aos seus dotes transformistas, Patricio Bisso é a celebridade mais incógnita de São Paulo. E, graças ao seu talento avassalador, tornou-se um artista reverenciado, e também um dos mais típicos personagens da São Paulo de hoje.
Durante a hora e meia de seu show, Bisso troca 25 vezes de roupa, doze vezes de perucas e apliques, oito de luvas e sapatos e cinco de línguas – canta hilariantemente em português, espanhol, inglês, francês e italiano. Mas o maior rodízio é o das “mulheres” que ele faz, numa vertiginosa cascata de estereótipos femininos que certamente deixaria irritada a sexóloga e feminista Marta Suplicy – que ele já desafiou publicamente há tempos pela sua mais popular criação na televisão: a também sexóloga, mas nada feminista, Olga del Volga.
No espetáculo no Sesc-Pompéia entram sucessivamente em cena a tangueira lacrimosa tipo Libertad Lamarque, que logo se transforma em Sheena, a rainha das selvas, com rabinho e tudo na roupa de tigresa; em Dorothy Lamour, a sereia do sarongue; em Rita Pavone, a mártir do twist; em Gigliolla Cinquietti, a pastaciutta do pop; na francesa Jacqueline Myrna, com sua bouillabaisse de erres no sotaque; na Emilinha Borba de O Mambo do Gato, com todos aqueles miaus; e por aí afora, num desfile de mulheres grotescamente sexies, rejeitadas, ingênuas, trágicas ou meramente descabeladas. Sai-se deste show com a impressão de que, se o sexo feminino sobreviver a ele, não haverá nada que o derrube pelos próximos 1 000 anos.
Em seu show, Patricio Bisso não se contenta em cantar os clássicos da música brega, acompanhado de uma possante banda de rock chamada Os Boko-Mokos – rigorosamente arranjada e ensaiada por ele. O que faz o espetáculo chegar aos 40 graus à sombra do Sesc-Pompéia é que ele troca de roupa a cada 4 minutos. Algumas dessas mudanças são feitas em menos de 15 segundos. Outras são feitas diante da própria plateia, a qual, mesmo vendo o truque dos olhos e bocas, frufus e taillers, e jogos de ombro ou cintura se materializando debaixo dos próprios narizes, nem por isso deixa de farejar o inesperado que inevitavelmente fará uma surpresa. E é o que acontece, por exemplo, quando Patricio Bisso, a poucos minutos do final, adentra no palco literalmente vestido como uma árvore de natal para cantar Eu Vi Mamãe Beijar Papai Noel — com todas as luzinhas piscando — e capaz de matar de rir até as renas do velhinho.
Nos bastidores — enquanto Os Boko-Mokos mantêm o ritmo pulsando durante as passagens de cena —, duas camareiras batalham contra coques, colares, anáguas, rabos-de-peixe, saias plissadas, colchetes, zíperes e alfinetes para as múltiplas trocas de tipo de Patricio Bisso em supervelocidade. O que faz com que, não raro, o artista leve uma espetadela onde mais dói. Mas ele não reclama. À sua maneira, Patricio Bisso está reinterpretando, ao vivo, o filme Todas as Mulheres do Mundo.
“Perco quase 2 quilos em cada show”, diz Patricio, “mas não sinto a menor saudade deles. O problema é que o tomara-que-caia da ‘Celly Campelo’ já está caindo. ” Quer dizer então que Patricio Bisso é um travesti? “Não”, diz ele. “O que eu faço é uma caricatura sofisticada de caricaturas originais. É uma espécie de ‘ilusionismo feminino’, porque não pretendo que a plateia acredite que eu seja aquelas mulheres. E não acho que seja cruel mostrar hoje o que havia de ridículo nelas porque, há vinte anos, elas já eram ridículas — e sabiam disso. ”
Bisso acha que, mesmo assim, o ridículo só se revela plenamente muitos anos depois e foi por isso que, como ele declara em cena, preferiu “adiar sua imitação de dona Eloá”, que já tinha preparado. Mas o artista ainda não se sente realizado. “Há um tipo que não posso fazer: o da Esther Williams, porque não sei nadar”, diz ele. “Além disso, ninguém tomaria banho em São Paulo nessa noite. Não haveria água que chegasse. Mas ainda vou fazer uma das mulheres que mais adoro: a Luluzinha. E, talvez ainda nesta temporada no Sesc-Pompéia, pretendo mostrar um novo tipo: a Debbie Lloyd, filha da atriz Debbie Reynolds com o cômico Harold Lloyd. ”
Antes do sucesso de Louca pelo Saxofone, Patricio Bisso já era celebérrimo em São Paulo entre os poucos e felizes que o conheciam como humorista, cantor, compositor, letrista, diretor de arte, figurinista, ilustrador, cronista de jornal e ator de cinema e televisão — e, ah, sim, também como one-man show. Ou seja, em seus anos paulistanos, Bisso, de jovem desenhista, evoluiu para uma personalidade muito mais complexa e eclética, podendo ser definido hoje como comediante, músico e transformista. Bisso só continuava desconhecido do grande público — talvez por nunca querer ter sido, como dizia o poeta modernista Mário de Andrade, “trezentos ou trezentos e cinquenta”. Ele preferia ser trezentas. E o outro problema é que, à sua frente, havia sempre uma mulher que o obscurecia e que, por mal dos pecados, era ele mesmo transformado.
Nenhuma dessas mulheres foi mais célebre — até agora — do que a sexóloga Olga del Volga, que reinou por um ano na Abril Vídeo, entre setembro de 1983 e meados de 1984. Bisso afirma ter criado a personagem a partir da carta de uma leitora da revista Nova que teria dito: “Orgasmo é como ônibus. A gente perde um e já-já vem outro”.
A partir daí, Olga del Volga passou a receber cartas a sério de espectadores cínicos ou cândidos — de ambos os sexos —, além das que a própria “sexóloga” inventava. Exemplos: “Finalmente tive um orgasmo ontem à noite, mas não sei se foi o orgasmo certo. O que devo fazer? ” Ou: “Que roupa se deve usar para o ato sexual? ” Ou: “ Nunca fui para a cama com um homem. Pelo menos, nenhum deles era homem. Serei um heterossexual convicto? ” Ou: “Meu marido está me traindo com o papagaio. Devo fazer que não vejo ou aprender a dizer corrupaco? ”
Nenhuma dessas cartas foi respondida por Olga del Volga nos padrões oficiais, tipo Marta Suplicy. Mesmo porque Patricio Bisso, um homossexual assumido, afirma que não entende nada de sexo. Apenas o pratica. Olga del Volga deixou de ser uma personagem de Patricio Bisso. Como uma criação que resolveu seguir caminhos próprios, a exemplo da criatura que se desprendeu daquele célebre médico inglês, o doutor Jekyll, Olga del Volga subitamente irrompe — sempre a convite, claro — em alguns dos mais chiques eventos de São Paulo e dá assistência direta a algumas de suas mais ilustres consulentes. Tipo: “Dona Olga, meu filho tem 45 anos e insiste em que eu lhe dê banho até hoje. E quem é esse Édipo de quem ele vive falando?”
Olga del Volga só não aparece mais porque, além de sua roupa — um conjunto azul escuro, comprado por Bisso num antiquário e particularmente alérgico a naftalinas — viver na lavanderia, seu criador está excessivamente ocupado com outras atividades e aventuras. Nos últimos dois anos, por exemplo, Bisso disputou e perdeu dois papéis que julgava importantes para a sua carreira. E ambos para o mesmo ator: o dançarino J. C. Violla. O primeiro, o do sofrido homossexual Paul na também sofrida versão brasileira de A Chorus Line, que naufragou nas bilheterias; o segundo, o de Geni, na filmagem de Ópera do Malandro, por Ruy Guerra, que, ao julgar pelos antecedentes da peça de Chico Buarque não aprece ter outro destino. “Mesmo assim eu queria”, diz ele.
Não que Patricio não sofra os caprichos do destino. Logo ao se tornar colunista da Folha de S.Paulo, em março do ano passado, com uma seção fixa às quintas-feiras, foi convidado por seu amigo, o badalado fotógrafo Miro, a comparecer à festa da Laranja, no município de Bebedouro, a 375 quilômetros da capital. Uma semana depois, Patricio deu sua versão pessoal do evento em sua coluna na Folha de S.Paulo e quase provocou uma revolução nas 39 000 almas que laboriosamente habitam Bebedouro.
A melhor coisa que ele escreveu foi que a “rainha da laranja” parecia-lhe exatamente isto: uma laranja. Além de outras considerações sobre o estágio intelectual da cidade naquela ocasião. A resposta foi uma saraivada de contestações do prefeito de Bebedouro — da qual Miro é cidadão — e com tal contundência que teve três consequências: 1) Patricio Bisso foi declarado persona non grata em Bebedouro; 2) a família de Miro ficou malvista por uns tempos na cidade; 3) o Brasil inteiro ficou sabendo que o fotógrafo Miro se chama Zulmiro. Ou seja, pegou mal para todos os implicados.
Não foi essa a primeira vez que Patricio Bisso provocou encrencas, e nem precisou ir a uma cidade do interior paulista para fazer isso. Em seu primeiro (e até agora único) show no Rio de Janeiro, no minúsculo teatro Ipanema, em 1977, ele se referiu galhofeiramente a Tônia Carrero como “a garçonete da Última Ceia”, e a Bibi Ferreira como “a aeromoça da Arca de Noé”. Foi o que bastou. Na plateia levantou-se indignada a atriz Marília Pêra e perguntou de jeito a que ninguém deixasse de ouvi-la para lá de Bariloche: “Até quando vamos ter que aturar essas bichas argentinas quando já temos tantas por aqui?” Não houve resposta do palco.
Patricio simplesmente não conhecia o poder de fogo da caixa de marimbondos em que estava metendo a mão, e o resultado é que, com isso, ele ficou tão maldito no Rio desde então, que, a partir daí, só pôs os pés lá a passeio, e mesmo assim com uma barba postiça. Felizmente, as coisas não ficaram assim. Patricio, que sempre foi fã de Marília, nunca se conformou com isso e, no ano passado, os dois fizeram espetacularmente as pazes, promovidas pelo cineasta Hector Babenco, que a dirigiu em Pixote e que teve Bisso como ator, figurinista e co-diretor de arte em O Beijo da Mulher Aranha. Mas Tônia e Bibi ainda não o perdoaram.
Não foram esses os únicos percalços enfrentados por Patricio Bisso na sua vida de artista. Há poucos meses, durante as filmagens de Brasa Adormecida, ainda inédito, o figurinista do filme — adivinhem quem — desentendeu-se com a estrela Maitê Proença porque esta insistia num delineador para os olhos que, segundo o figurinista, nada tinha a ver com a época em que se passava o filme, os anos 60.
Quando se trata dos anos 60, ainda não nasceu quem possa disputar com Patricio Bisso, embora ele tenha nascido apenas em 1957. Resultado: houve um bate-boca, Maitê irritou-se, Patricio também. Ele a esbofeteou, ela arrancou-lhe os óculos e quebrou-os. Os dois tornaram-se infelizes para sempre e, por enquanto, não há Hector Babenco que dê jeito. Para não falar de sua discussão com um velho amigo, perfumista Aparício Basílio da Silva, a respeito de uma hipotética dentadura postiça de Bette Davis, em que Aparício discutiu a “autoridade” de Patricio para falar sobre assuntos que não tinha “vivido”. Resultado: os dois ficaram de mal.
Patricio Bisso é, no mínimo, um coquetel polêmico. E uma dessas polêmicas inclui a sua própria idade, a qual é alternativamente apresentada como sendo de 26, 27 ou 28 anos, nas reportagens dos jornais, embora alguns suspeitem que ele já passou dos 30, pelo simples fato de que “ninguém pode ter acumulado tanto lixo cultural com menos do que isso”. O arranca-rabo com Maitê Proença por causa do tal delineador pode ser um desses exemplos: “Ela queria fazer uma sombra nos olhos que não se usava naquele tempo”, afirma Patricio. Como ele pode ter tanta certeza? Pois a verdade é que Patricio Bisso tem 28 anos — brevemente 29, pois é do dia 25 de janeiro de 1957 — e quem tiver dúvidas sobre a sua mamutiana acumulação de “lixo” cultural basta ir ao seu apartamento no 28º andar do bloco B do Copan. Se ele acrescentar ao seu espaço um simples canário numa gaiola, já pode ser enquadrado num caso de superpopulação.
Em menos de 30 metros quadrados, divididos num “quarto” e “sala” por biombos cobertos de fotos de artistas do cinema americano, entulham-se no apartamento de Patricio Bisso cerca de 2 000 livros ilustrados; pilhas de revistas antigas que, umas sobre as outras, devem compor um Everest da nostalgia; uma maleta contendo quase 100 óculos, cada qual mais cafona que o outro e, segundo Patricio Bisso, “quanto mais cafona, melhor”; um sortimento de cartolas, uma delas contendo toda a sorte de bugigangas e bijuterias tipo Lojas Americanas; perucas e mais mais perucas fora de moda; um estoque de sapatos nunca sonhado nem por Cinderela. enchimentos para os ombros que fariam inveja até ao velho Maciste; um terremoto de vestidos que não faria feio nem entre os personagens de Carmen ou Tavares de Miranda; e mais maquilagem estocada do que Dercy Gonçalves teve em toda sua carreira.
Maquilagem, aliás, que Patricio Bisso borrou com o suor do seu rosto em noites e noites de shows em diversos teatros de São Paulo nos últimos anos — alguns deles, Ladies na Madrugada (que ele gostaria de ver remontado com o novo título de AIDS na Madrugada), Perfume de Gardênia, Uma Noite Perdida com Patricio Bisso, Caprichos do Coração, todos com grande sucesso de “estima” entre os críticos e os amigos que, até então, eram os seus únicos espectadores. Mas que lhe permitiram comprar o tal apartamento no edifício Copan, que ele define como “uma kitchenette Kitsch” ou “um apê op”, referindo-se à terrível decoração op-art das paredes, que ele herdou e não quis mudar.
Engana-se, porém, quem pensar ver nisso o verdadeiro Patricio Bisso. Seu coração — ou mente — está ainda mais recuado no passado. Encontra-se solidamente depositado numa também invejável coleção de discos dos anos 20 e 30, contendo gravações originais das canções de Cole Porter — que ele vai homenagear em janeiro com um show no 150 Night Club, no Hotel Maksoud Plaza, em parceria com Zé Rodrix e Magdalena de Paula, cantando as mais debochadas versões em português da obra do compositor. Sem falar nas suas raríssimas gravações em velhos discos de 78 rotações — aqueles que quebram — que Patricio guarda com zelo canino e até consegue tocar numa vitrola especialmente aparelhada cujas agulhas ele manda comprar em Londres.
De que ele vive no passado ninguém duvida, mas já houve época em que Patricio Bisso foi um ousado antecipador, principalmente no vestuário. Quando, mal chegado a São Paulo, de Buenos Aires, em 1974, aportou na agência de propaganda DPZ e na redação do Jornal da Tarde, com 17 anos, usando um casaco de onça e portando a tiracolo um balaio de vime à guisa de bolsa, em busca de trabalho como ilustrador, ninguém entendeu de onde ele tinha saído. Mostrou os seus desenhos e conseguiu emprego — em ambos os lugares. Durante anos, as famosas vinhetas da seção de artes e espetáculos do Jornal da Tarde saíram de seu frasco de nanquim, sem que você percebesse — e todas com um sabor especialissimamente antigo.
É por isso que quem sabe das preferências musicais de Patricio Bisso — Ruth Etting, Marta Eggerth ou Irene Bordoni, cantoras do tempo em que o cinema não era apenas mudo mas também surdo — espanta-se ao vê-lo acompanhado de uma banda de rock que ele mesmo montou. “Meu desafio agora é conquistar um público menos informado com um material pseudo-sofisticado”, diz Patricio. “Além disso, a música dos anos 80 é a mesma dos anos 20, no jeito de se apresentar.”
Mas nem tudo são orquídeas ou gardênias na vida do artista. Em 1980, Bisso foi apanhado na malha fina daquela ratoeira conhecida como “lei dos estrangeiros” — por puro descaso seu quanto a legalizar sua situação. Teve de deixar o país. Mas sua escolha foi simples: resolveu tentar a sorte em Nova York. Como ilustrador, procurou o famoso Milton Glaser, que o recebeu muito bem, mas nenhum trabalho lhe ofereceu de concreto. Como perfomer, sonhou com um sofisticado porão em St. Marks Place, no Village, ou com o palco do Mud Club, templo da então new wave no bairro de Tribeca — e acabou num infecto cabaré porto-riquenho na zona mais feia da cidade.
Derrotadíssimo nas suas aspirações de chegar à Broadway, Patricio voltou dez meses depois para Buenos Aires, onde o esperavam sua mãe e algumas dezenas de alunos particulares de inglês. A propósito de sua mãe, dona Elvira, em 1937, quando garotinha, ganhou um concurso em Buenos Aires como a “Shirley Temple” argentina. Adulta, fazia réplicas de roupas de atrizes e posou para uma foto com um vestido copiado de Sabrina. Bisso teve a quem puxar. Aos 7 anos já estava diante de um microfone escolar, todo desinibido, declamando um vago poema sobre a estrela de Belém.
Mas voltemos ao ano de 1982, em Buenos Aires. Numa bela tarde outubro de 1982, quando Patricio Bispo explicava a um diligente estudante a diferença entre shall e will, na montagem do tempo futuro dos verbos ingleses, o general-presidente Leopoldo Galtieri cortou a fita inaugural da ocupação das Ilhas Malvinas, declarando com isso uma guerra particular à segunda língua de Patricio Bisso: o inglês.
Sentindo que poderia ser convocado para lutar — logo ele, pacifista extremo —, Patricio Bisso pegou suas caixas de chapéu, deixou todos os vestidos para trás (“Tentei dá-los para os pobres, mas os pobres recusaram”, diz ele.) e mandou-se de volta para o Brasil. Desde então tem tomado certos cuidados para não escorregar em nenhum item da lei dos estrangeiros, dedicando-se a passar periodicamente algum tempo fora, em lugares como os Estados Unidos, Europa ou Oriente Médio, como fez este ano. Detalhe: Patricio Bisso tem como fiadores de sua atual permanência no Brasil os ministros Fernando Lyra, da Justiça, e Almir Pazzianotto, do Trabalho.
De lá para cá, o mínimo que se pode dizer é que sua vida tem sido um palco iluminado. O cinema o descobriu e ele tem aparecido em tantos filmes como um coadjuvante de luxo que arrisca se tornar o José Lewgoy brasileiro. Começou com uma brincadeira: a filmagem da orelha — não do livro — de E o Vento Levou, dirigida por Marcio Kogan e Isái Weinfeld com Bisso interpretando, naturalmente, Scarlet O’Hara. O curta-metragem, chamado Idos com o Vento acabou premiado no festival de cinema de Gramado, em 1984 e, a partir daí, nasceu uma estrela que poderá voltar para casa ano que vem com um Oscar debaixo do braço. Duvidam?
O cobiçado boneco pode ir parar nas mãos de Patricio, não pela sua participação como ator em O Beijo da Mulher Aranha, de Hector Babenco — cerca de 20 minutos, sem falas —, mas por seu trabalho como figurinista e co-diretor de arte no filme. David Weisman, produtor de O Beijo da Mulher Aranha, garante que o filme será indicado como candidato ao Oscar em várias categorias, entre as quais a de direção de arte. Babenco também acha, mas prefere não arriscar nenhum palpite até fevereiro, quando a Academia divulgará suas nominations.
Um Oscar na prateleira, ou mesmo para escorar a porta, é um luxo, mas Patricio tem ainda outras ambições: tornar-se cineasta e dirigir, já no próximo ano, um filme chamado Olga — que não será baseado no best-seller homônimo de Fernando Morais sobre a mulher de Luís Carlos Prestes, mas na tempestuosa carreira da fictícia sexóloga Olga del Volga. O filme começará na Rússia, em 1925, com Olga dentro do carrinho de bebê que despenca pela escadaria como na famosa sequência de O Encouraçado Potenkim. O carrinho mergulha no Rio Volga, onde Olga é recolhida por ciganos, numa paráfrase de Charlton Heston como Moisés em Os Dez Mandamentos —, e quinze anos depois vê-se na Ucrânia, como cuspidora de fogo e atiradora de facas. Um namoro fortuito com Freud em Viena, pouco antes da guerra, leva-a interessar-se pela psicanálise. Preferindo a liberdade, faz-se passar por Svetlana Stálin, mas esquece-se de raspar os bigodes que herdara do pai — e por aí vai. O financiamento de Olga já está sendo garimpado nos Estados Unidos pelo mesmo David Weisman de O Beijo da Mulher Aranha.
Sofisticação demais? Talvez, mas Olga del Volga já conta com pelo menos um trunfo no mercado brasileiro: consagrou-se ao engrossar o elenco de personagens discutidos da novela da Globo Um Sonho a Mais, de Lauro César Muniz e Mário Prata, que há meses provocou reações no seio da família brasileira por mostrar um “excesso” de travestis. “Não me considero um travesti”, insiste Patrício. “O travesti é só aquilo que se pode ver. E também não quero ser mulher. O que eu faço é uma coisa mais complexa, talvez até mais doente, não nego. É a extravagância. Mas não saio de mulher na rua — a não ser de Olga, que já virou uma instituição.” O que, quando acontece, deve no mínimo intrigar os zelosos zeladores do Copan, ao verem sair do edifício uma mulher que não tinha entrado.
Zelo, aliás, é uma palavra com significados especiais para Patricio Bisso. Ele economiza, por exemplo, cada centavo ganho — e prefere fazê-lo em dólares. Seus shows anteriores nunca foram sucesso de público, mas ele não se afastou do seu estilo, nem mesmo Louca Pelo Saxofone, que a alguns parece radicalmente diferente. Mas o que houve não foi uma mudança de repertório, e sim de timing: é como se tivessem passado dez anos entre o último show de Patricio Bisso e o atual, pela alta sensação de profissionalismo deste. E não são apenas os aplausos ao fim de cada número que dizem isto. É o teatro cheio todas as noites e os — por enquanto — 10 milhões de cruzeiros que saem semanalmente da bilheteria para o seu bolso, depois de pagas todas as despesas com o teatro e com com os Boko-Mokos. Parece ter chegado, finalmente, o reconhecimento do grande público ao artista que, como nenhum outro, escolheu a cidade de São Paulo como cenário, tema, inspiração e palco do seu humor.
Seu show é um tiroteio: Cachos ensebados/Sandália havaiana/Nunca usa sutiã/ e adora bata indiana/ Sacolão felpudo/ Lhamas do Peru/ Brinco artesanal/ E cinto em couro cru/ Hippie!/ Sempre tão suja e feia/ Vá remendar sua meia!/ Parece a bruxa Alcéia/ Tua própria mãe te odeia/ Eterna odisseia/ Hippie!/ Muitas almofadas/ Poster na parede/ O colchão no chão/ No teto uma rede/ Várias samambaias/ Ela acha chique/ É vegetariana/ E fez curso de astrologia. Na plateia, incontáveis, espectadoras riem, mas olham a si próprias e se reconhecem, mal conseguindo disfarçar um rubor escarlate. No palco, Patricio Bisso curva-se graciosamente para receber aplausos, com a deliciosa certeza de saber que é um estupendo sucesso, fazendo exatamente o que ele gosta de fazer.
EIS BISSO, O FIGURINISTA
O lado menos conhecido de Patricio Bisso, o de figurinista profissional, capaz de criar mais de 200 modelos para um único filme, poderá ser apreciado no final de fevereiro próximo, quando estreia na capital O Beijo da Mulher Aranha, filme de Hector Babenco, outro argentino radicado no Brasil, como Bisso. No filme, Patricio aparece como ator em quatro pequenas cenas. Mas seu nome e suas criações tomam corpo mesmo é na forma chique e esplendorosa com que veste Sônia Braga: vinte modelos inspirados em Zarah Leander, famosa atriz dos filmes de propaganda do Reich nazista. Já na próxima sexta-feira, no entanto, modelos do figurinista Bisso poderão ser visto por todo o Brasil no especial de fim de ano da TV Globo. De fato, Bisso vestiu a estrela deste ano na Globo, Rita Lee. Dos dez modelos desenhados, o mais maluco é para a música Glória F., que transforma a roqueira paulistana em uma espécie de vampirela, com seios e traseiros enormes, modelados por um vestido de couro preto, com taxas.
No filme O Beijo da Mulher Aranha, Patricio Bisso desenhou 200 modelos e vestiu mais de 400 pessoas, numa reconstrução rica, mas estilizada e fantasiosa, de uma Paris ocupada pelos alemães na II Guerra Mundial, algo sem dúvida da comicidade e do toque caricatural das roupas criadas para seus próprios shows. Foram, na verdade, seis meses de trabalho duro e poucas horas de sono, divididos entre centenas de desenhos e visitas quase diárias às lojas de tecido e armarinhos da Rua 25 de Março e aos brechós da Estação da Luz, ao Lar Escola São Francisco, ao Hospital do Câncer e ao bric-à-brac Naphtalina, na busca de sapatos, chapéus, bolas e casacos que caracterizassem a época. Patricio não sabe calcular quantos metros de cetim, damasco e veludo foram consumidos. Mas lembra-se de um único peignoir, usado por Sônia Braga numa cena cena de 10 segundos, exigiu 40 metros de renda preta. Perfeccionista como é, Bisso não se envolveu apenas com a confecção do guarda-roupa. Segundo Babenco, ele acompanhou toda a filmagem, ajudando inclusive a escolher os figurantes, e estava sempre muito atento aos detalhes de etiqueta da época.
Tanto Patrício quanto Babenco sonham com a possibilidade de O Beijo da Mulher Aranha ganhar o Oscar de 1986. “Nos Estados Unidos, o filme fez sucesso em 250 cinemas e tem bom lugar nas previsões de candidatos às estatuetas”, diz o figurinista. Caso ganhe um Oscar pelos figurinos, Patricio Bisso já bolou até uma roupa de impacto para a ocasião do recebimento do prêmio: metade, um chiquérrimo smoking; outra metade, um rabo-de-peixe. Ele tem certeza que vai abafar.
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