Paulistanos centenários compartilham suas memórias da cidade
Nos 466 anos de São Paulo, as lembranças moradores que viveram as transformações da capital, que tinha 580 000 habitantes em 1920
Os sete andares da Casa Médici, prédio comercial construído em 1912 na Rua Líbero Badaró, no centro, ainda impressionavam os 580 000 moradores da São Paulo de 1920. A partir dessa época, construções desse tipo começaram a tomar a cidade, em quantidade e altura até então impensáveis, como o Edifício Martinelli, o primeiro arranha-céu paulistano, que teve sua estrutura com trinta pavimentos inaugurada em 1929. Mas o crescimento vertical não foi a única metamorfose dos últimos 100 anos.
“A industrialização atraiu novos moradores de outras cidades e também países e, entre os anos 1920 e 1960, a população dobrava de tamanho a cada década, alcançando 3,9 milhões de pessoas no fim desse período”, ressalta Regina Meyer, doutora em arquitetura e urbanismo pela Universidade de São Paulo. Para abrigar esse povo todo, começaram as grandes transformações, uma das mais radicais, nos anos 1940, sob o comando do prefeito Prestes Maia, que alargou avenidas como Ipiranga e São Luís, implantou os corredores da Nove de Julho e da 23 de Maio. Em 1968, saíram de cena os bondes, que circularam durante 96 anos, e as vias foram tomadas por carros.
Usina de empregos, oportunidades e diversão, a capital paulista tende a crescer ainda mais. “Em 2050, a Grande São Paulo deverá alcançar Campinas (a 100 quilômetros daqui)”, acredita a arquiteta. Ao completar 466 anos, em 25 de janeiro, São Paulo possui mais de 12 milhões de moradores (66% ainda em casas, apesar da verticalização) e mais de 8 milhões de veículos (5,7 milhões de carros). O ritmo de crescimento caiu. Se entre 1900 e 1920 a população aumentou 141%, entre 2000 e 2020 ela não deverá ultrapassar os 2%. “Houve um deslocamento de atividades produtivas para o interior e outras regiões”, explica Regina.
De seus habitantes, cerca de 1 390 pessoas alcançaram os 100 anos — 35% mais que na década passada. “Setenta e seis por cento são mulheres, porque cuidamos melhor da saúde e nos expomos menos a situações violentas”, estima Bernardette Waldvogel, gerente de indicadores da Fundação Seade (e, sim, é irmã da jornalista Mônica Waldvogel). A projeção é que, em 2050, sejam quase 9 500 centenários. A seguir, representantes dessa turma cheia de vida comentam as mutações que testemunharam e as expectativas para o futuro da cidade aniversariante.
AMIGO NA PRAÇA
A japonesa Yayoko Tsukiyama, que completa 100 anos em 2020, vive no Brasil desde os 13. Morou por quase quarenta anos na Rua São Joaquim, na Liberdade. Sem falar português fluentemente, andava de ônibus e de metrô por toda a cidade. A dona de casa comprava frutas em uma quitanda do bairro e lá conheceu um casal que a levou para o rádio taissô — ginástica rítmica criada em 1928 para melhorar a saúde, a disposição e a longevidade. Por mais de vinte anos acordou às 5h30 para encontrar os amigos e seguir a pé até a Praça João Mendes, no centro, ou a da Liberdade. Iam uniformizados, com boné, calça e camiseta brancos. Com música ao fundo, treinavam por uma hora. Diariamente. “Era muito legal ocuparmos as praças. Graças ao exercício, sou forte até hoje.”
Também passou a frequentar aulas de karaokê. E gostou tanto que participou de campeonatos e ostenta troféus. Ainda faz aulas. Por anos Yayoko ajudou a preparar os tradicionais bolinhos de arroz japoneses, os motitsuki, para comemorar o Ano-Novo. Todo 31 de dezembro o grupo da ginástica se reunia na Praça da Liberdade. Os homens faziam o ritual de socar o arroz com pilão em gestos coordenados e sincronizados e as mulheres, os bolinhos.
NA ÉPOCA DO CAFÉ
“Olha como era a minha vista quando comprei este apartamento, em 1977. Quase só havia casas, e daqui dava para avistar até a Avenida Paulista”, mostra Abelardo Marcos Rodrigues à beira da janela de seu apartamento na Vila Nova Conceição (Zona Sul). Ao comparar a foto emoldurada em seu colo com sua paisagem atual, ele não demonstra saudosismo, apenas curiosidade. Nos últimos cinco anos, o fazendeiro aposentado quase não sai do bairro. Com problemas de locomoção, de manhã ele passeia de cadeira de rodas pelas praças ao lado de uma cuidadora. Depois, lê revistas de atualidades que assina há décadas. No dia 31 de dezembro, sua sala abrigou quase cinquenta pessoas não apenas para celebrar o réveillon, mas também para comemorar seu aniversário de 100 anos, completados naquela data. “Só meus ossos para me fazer ficar quieto em casa. Até pouco tempo atrás, vivia na rua”, diverte-se.
Nascido em Santa Adélia, a 382 quilômetros da capital, Rodrigues mudou-se para São Paulo em 1964, mas vinha para a cidade com muita frequência desde a década de 40, quando assumiu a fazenda da família. “Não saía do Largo do Café, um lugar muito elegante, com fazendeiros e banqueiros vestidos de terno, impecáveis.” Em uma de suas histórias preferidas, lembra como conheceu o então ministro da fazenda, José Maria Whitaker, no centro de São Paulo, em 1955. “Fomos debater o mercado, que estava em crise. Mas era a época do ‘fio do bigode’, não precisava de tantas burocracias.” A última vez que passou pelo largo do centro foi na década de 90. Mal reconheceu o lugar: achou sujo, feio e não voltou mais. Prefere manter o otimismo e suas lembranças no apartamento perto do Parque Ibirapuera. “Até hoje, olho esta vista, os prédios, as árvores lá embaixo e vejo como viver é bom.”
BRINDES E PASSEIOS EM PINHEIROS
Em um banco da Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, Adelina Francisca Varisano descansa de sua caminhada diária enquanto observa o vai e vem de pedestres em passos acelerados sobre o piso de concreto. “É outro lugar, mal dá para reconhecer”, constata a dona de casa, que completará 101 anos em 13 de junho. “A praça era um grande parquinho com muita areia, grama, frequentado por mães e crianças, cheio de brinquedos, aonde eu trazia o Sinai e a Sônia, meus dois filhos, para brincar”, lembra. Nascida em Botucatu, de família de lavradores, Adelina se mudou para a Rua Alves Guimarães aos 13 anos para trabalhar na casa de uma família como empregada doméstica. Fazia compras em um açougue na Rua Cônego Eugênio Leite, e lá conheceu Sinai Varisano, o filho do dono do negócio. Em 1943, eles se casaram na Igreja do Calvário, na Rua Cardeal Arcoverde.
“A igreja é um dos lugares que menos mudaram. Mas os casamentos, nossa… Na minha época, a gente nem tirava fotografia nem tinha lua de mel! Agora, é tudo muito chique”, ri. O casal viveu em um sobrado na Rua Artur de Azevedo, 502, onde atualmente funciona uma loja de vinhos. “Colocaram grades, mas continua uma casa, e tenho saudade toda vez que passo em frente.” Após a morte de Sinai, que sofreu um infarto em 1980, aos 64 anos, Adelina se mudou para um apartamento na Rua Cristiano Viana. Os filhos também faleceram: Sinai Filho, aos 56 anos, de deficiência pulmonar, em 2000, e Sônia, aos 71, em 2015, vítima de câncer de mama. “A gente precisa respeitar a vontade de Deus. Além disso, minha família segue”, conforma-se Adelina, que tem cinco netos e duas bisnetas. Apesar dos pedidos dos parentes, ela faz questão de morar sozinha, com a ajuda de uma funcionária, que vai à sua casa sempre no período da tarde.
Ela mesma cozinha e, para acompanhar a refeição, toma uma taça de vinho (“Meu fortificante”). Passa seu dia lendo livros espíritas e completando palavras cruzadas. “Na televisão, só gostava do programa do Ronnie Von, mas acabou…” Até cinco anos atrás, andava sozinha pelas ruas e pegava ônibus para fazer sua hidroginástica no Sesc Consolação. “Um dia, porém, o motorista freou forte e caí. Não me machuquei muito, mas meus netos me proibiram de circular”, conta. Hoje, caminha pelo bairro na companhia de um neto ou da cuidadora. “Essas calçadas são traiçoeiras.” Se pudesse, Adelina daria um presente de aniversário a São Paulo: “Paz, menos tumulto. Assim, as pessoas poderiam desfrutar melhor a vida”.
BONDE DA SAUDADE
As vagas no Anhangabaú eram abundantes na década de 50, e Nina Romanovsky nunca teve problemas para estacionar seu Standart Vanguard por lá. Aos 30 anos na época, trabalhava como secretária em uma indústria de esquadrias e não pensava em se casar. “Era moderninha e destemida”, define-se. Por exemplo, no tempo da II Guerra, quando a cidade era governada por Prestes Maia, tirou seu pai de uma delegacia no centro, onde morava. Brunislav era czarista e fugiu da ditadura de Lenin. Nessa saga rumo a São Paulo, em uma escala na Estônia, Nina nasceu em 13 de fevereiro de 1920. Só por ser russo, a polícia achou que ele era comunista e o prendeu. “Mulheres não pisavam em departamentos policiais, mas fui lá, falei direitinho com o delegado e, seis horas depois, soltaram meu pai”, conta.
Nina também gostava do Carnaval de rua na Avenida Paulista, então cheia de árvores, e frequentava o Parque Trianon desde a infância, como mostra na foto acima, aos 9 anos, ao lado da mãe. Fora a saudade dos bondes… “Os motoristas eram tão educados. Uma vez, meu chapéu caiu, e o condutor parou e o buscou para mim”, lembra. Ela deixou de trabalhar aos 32 anos, após se casar com o advogado Dimas de Andrade e Silva (que faleceu em 1985, aos 75 anos, de insuficiência cardíaca). Mas continuou dirigindo até os 83 anos. “O trânsito de São Paulo se tornou assustador.” Hoje, mora com a filha única, a professora Zenaide, 67, em um casa no Morumbi e, há oito anos, após um acidente vascular cerebral, só sai para ir ao médico. Recebe visitas dos dois netos e três bisnetos, passa o dia jogando Paciência no iPad e vendo telejornais. “Vejo na televisão, tem muita violência por aí. Isso é o pior da cidade. Em compensação, essa tecnologia é muito bonita. Se tivesse computador no meu tempo, meu trabalho seria bem mais fácil.”
DE CHAPÉU NO CINEMA
Aos 100 anos, Cybelle Vassimon sorri com os olhos ao recordar-se de quando chegou a São Paulo, em 1933, vinda de Caconde (SP). Com 13 anos, foi morar com um tio e estudar no tradicional Caetano de Campos, na Praça da República, onde hoje funciona a Secretaria de Estado da Educação. Residia em Campos Elíseos, na região central. “Ainda me lembro de quando andei de bonde a primeira vez. Era o meu segundo dia na cidade. O bonde todo aberto, o vento no rosto, eu ia prestando atenção em tudo ao redor. Foi amor à primeira vista.” Cursou biblioteconomia. Ler era e ainda é uma de suas paixões. Em 1944 prestou concurso para a então Bolsa Oficial de Valores de São Paulo, cuja sede ficava no Palácio do Café, no Pátio do Colégio. Passou em primeiro lugar, foi a segunda mulher a integrar a equipe da bolsa. Atuava na biblioteca do departamento jurídico e era responsável pelas pesquisas de legislações, doutrinas e jurisprudências que embasavam os pareceres dos advogados. E depois batia à máquina. Ia trabalhar de bonde, descia na Praça do Patriarca e caminhava até lá.
Nos fins de expediente, frequentava teatros e cinemas do centro. “Ia muito ao (Teatro) Municipal, aos cines Marabá e Olido, de chapéu e tudo.” Conta que os cinemas, com salas grandes, eram lotados. E foi na comemoração do quarto centenário de São Paulo, em 1954, que a vida de Cybelle tomou outro rumo. Em um 25 de janeiro, começou a namorar o marido, Cícero, que morreu em 2010. Assistiam a uma apresentação de aviões no Ibirapuera. “Era bem diferente do parque de hoje. Estava cheio. Os aviões jogavam papéis com estrelinhas prateadas e nós ficávamos maravilhados.” Casou-se em 1955, teve filhos e deixou o emprego. Morou por mais de cinquenta anos na Alameda Gabriel Monteiro da Silva, antes de mudar-se para o Itaim Bibi, onde vive até hoje. “São Paulo é cultura, gastronomia, vibração.”
EXPEDIENTE AOS 100 ANOS
“Aqui ficava o Cine Art-Palácio”, aponta o editor Edmondo Andrei ao passar pelo edifício na Avenida São João, em frente ao Largo do Paissandu. Ele observa a construção modernista assinada por Rino Levi que hoje — uma pena — mais parece um prédio fantasma. “Quem diria, era um dos lugares mais elegantes da cidade. Aliás, como esta região toda, conhecida como Cinelândia por ter dezenas de cinemas.” Andrei caminha pelo centro com propriedade. Desembarcou em São Paulo em 1954, na Avenida São João, onde ficava o terminal da Viação Cometa. Naquela época, ainda não existiam terminais rodoviários. Nascido em 24 de fevereiro de 1920, em Bucareste, capital da Romênia, abandonou o regime socialista, onde ganhava uns trocados como cantor, e prosperou como dono de uma editora nos Campos Elíseos, especializada na área médica.
Até hoje, dá expediente no local de segunda a sexta, ao lado da esposa, Simona, de 84 anos. “Adoro trabalhar e acompanho as novidades”, conta o empresário, que usa o WhatsApp instalado em seu iPhone para fazer negócios. Nos fins de semana, levava a mulher para jantar no Bierhalle, antigo restaurante alemão em Moema. “Era um ambiente com ótima comida e ainda havia uma pista de dança.” Recebe a filha e as duas netas no apartamento em Higienópolis. “Continua sendo o melhor bairro de São Paulo. Também gosto do centro, mas o que estragou lá foi terem deixado implantar a cracolândia”, acredita. “Se não fosse isso, vocês ainda teriam o modo de vida burguês que me cativou quando cheguei aqui.”
ÀS MARGENS DO IPIRANGA
A cor do esmalte combina com o nome, Rosa Bacchi de Almeida Vergueiro, e foi escolhida especialmente para a festa no domingo (19), dia em que completou 100 anos. A celebração reuniu cerca de quarenta pessoas na casa de sua filha única, a professora Rosely Vergueiro, 65, na Vila Nova Conceição. “O tempo passa sem você perceber”, define. Rosa vive com a filha desde 2007, após a morte do marido, o contador Cícero de Almeida Vergueiro, que sofreu um ataque do coração aos 92 anos. Até então, morou durante mais de sessenta anos em uma casa em frente ao Museu do Ipiranga. “Era o meu quintal, e fiquei triste quando fechou. Espero estar viva para visitá- lo na reabertura. Dizem que será em 2022, né?”, programa.
Nas memórias da dona de casa, a capital era outra. “São Paulo tinha espaço, árvores, casas… Agora, é tudo prédio. Lembro de ir a circos no Ipiranga, mas isso acabou. Acho que porque não cabe mais.” Até três anos atrás, quando caiu da escada e fraturou a perna direita, curtia caminhar pelo Parque da Independência. “Lá nunca mudou muito, mas, em época de festas, tinha desfile da cavalaria nas ruas ao redor.” Também diz que só conheceu o metrô na última década. “Lembro da inauguração, mas não fiquei com vontade de andar debaixo da terra.” Depois do problema de mobilidade, agora passeia de carro com a filha e seu neto por lugares como o Hortifruti Imigrantes, onde desde a década de 80 faz compras e come pastel de carne. “Uma parte boa desta nova São Paulo é a facilidade do transporte, tudo mais rápido. Mas já pensou se tivesse o mesmo espaço, as mesmas árvores e parques do século passado? Aí, seria um paraíso.”
RESIDÊNCIA MODERNISTA
Nascida em Buenos Aires, Eugênia Fischer, de 104 anos, esbanja saúde e lucidez ao relembrar sua vida em São Paulo. Ela se mudou para o Brasil aos 5 anos. No Sul cresceu e se formou em letras. Sua família tinha uma fábrica de roupas e decidiu trazer a empresa para São Paulo. Eugênia e os filhos chegaram em 1958. Moraram cerca de dois anos no Jardim Paulistano antes de se mudarem para o Edifício Bretagne, em Higienópolis, projetado pelo arquiteto João Artacho Jurado — o imóvel foi tombado como patrimônio histórico. “Ainda me lembro como se fosse ontem. O prédio era uma atração turística. Ônibus de excursões de vários locais do Brasil e até mesmo do exterior estacionavam todos os dias na frente do edifício para que as pessoas pudessem admirá-lo e fotografá-lo.”
Ela lembra que a região estava razoavelmente urbanizada — já existiam, por exemplo, os colégios Rio Branco e o Nossa Senhora do Sion. Algumas casas ainda resistiam, mas os prédios já ocupavam o cenário. Um dos hobbies da então dona de casa era jogar baralho com as amigas no Clube Hebraica, da comunidade judaica. Ia ali pelo menos uma vez por semana dirigindo o próprio carro — guiou até os 80 anos e só parou porque seu Fusca bordô foi furtado em frente ao Mercadão da Lapa e os filhos a proibiram de voltar a dirigir. Frequentava o Mappin, na região central, para tomar chá da tarde com as amigas. “Era lá que eu realizava as festas de aniversário dos meus filhos.” Por volta dos 50 anos decidiu voltar a estudar. Tornou-se professora de faculdade. Aos 80 anos, matriculou-se na Faculdade da Melhor Idade da PUC- SP, no curso que frequenta até hoje. “Vou às aulas duas vezes por semana a pé. Nunca faltei.”
ZONA LESTE A PÉ
Apparecida de Oliveira Santos, a “Tia Cida, rainha do turismo”, está com 106 anos — 94 deles em São Paulo. Mudou-se para cá aos 12 anos, para morar com uma tia, vinda da colheita de algodão e café em Itapira (SP). Sua primeira casa foi na Rua Padre Vieira, no Pari, onde hoje há vários comércios. “Quando cheguei, a Praça da Sé era muito linda. A catedral ainda estava em construção. O Pátio do Colégio era o nosso cartão de visita. Uma pena que esteja tudo tão descuidado.” Foi estudar em um colégio de freiras na região da Augusta. “Eu ia e voltava a pé (cerca de 6 quilômetros). Ia observando e conhecendo os bairros.” Depois das aulas, ajudava as freiras na cozinha. “Primeiro, rezava o terço. Fazíamos comida para moradores de rua.” Cursou até o antigo ginásio e parou de estudar porque foi trabalhar como faxineira, lavadeira e costureira para ajudar a criar os irmãos mais novos.
Aos 22 anos se casou e em 1936 se mudou para o Tatuapé, onde vive até hoje. “O bairro era muito pobre, basicamente formado por chácaras e vilas. A Radial Leste não existia. Para chegar à Zona Leste só havia um bonde, da Praça da Sé até a igreja da Penha. O resto era tudo feito a pé.” Em 1948 arrumou um emprego no Instituto Adolfo Lutz, na Avenida Doutor Arnaldo, onde ficou por 31 anos, até se aposentar. “Subia no bonde na Penha até a Sé. De lá caminhava até a Praça Ramos (de Azevedo, na República), onde pegava o bonde Pinheiros e descia em frente ao Cemitério do Araçá.” Frequentava bailes em clubes, como o Carinhoso, no Ipiranga, e a Casa de Portugal, na Liberdade. Ia à loja de departamentos Mappin — “conheci de ponta a ponta”. Aos 58 anos, decidiu fazer faculdade de turismo e passou a organizar excursões para a terceira idade. “Chegava a lotar trinta ônibus. Fazia muitas viagens para o Rio, para o interior.” Aos 106, ainda organiza passeios. Atibaia, em agosto, foi o destino mais recente.
UM AMOR CAÓTICO
Imagine um palimpsesto, aquele pergaminho que tem um texto raspado para dar lugar a outro. Trata-se da melhor metáfora para explicar São Paulo, segundo o arquiteto Carlos Lemos. Com 95 anos completados na quarta (22), o chefe do escritório de Oscar Niemeyer em São Paulo na década de 50 não apenas testemunhou boa parte das mudanças da capital no último século como também ajudou a projetá-las. Integrou o time que desenvolveu o Parque Ibirapuera e o Edifício Copan, além de ter sido conselheiro de órgãos de preservação do patrimônio cultural, como o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). “São Paulo é uma cidade sem cara, em que construções modernistas, neocoloniais, neoclássicas, neogóticas, art déco e também sem estilo algum são erguidas lado a lado.”
Um dos principais motivos disso, segundo ele, é a desobediência aos planos diretores. “Absolutamente nenhum deles foi respeitado, e tudo é modificado de acordo com interesses econômicos.” Ele cita como exemplo a antiga Rua Dona Hipólita, no Jardim Paulista. Era uma região estritamente residencial, até que começaram a abrir lojas de decoração. Assim nasceu, na década de 50, a Alameda Gabriel Monteiro da Silva, rebatizada em homenagem a um político. “Os proprietários diziam que não eram lojas, mas showrooms, e davam seu jeitinho para convencer os fiscais.” Sobre o futuro, Lemos aposta em novos prédios tecnológicos, numa verticalização moderna. “Não aquelas construções com vidros espelhados horrorosos, que só refletem calor, mas algo mais ecológico, com uma mistura de materiais, como têm proposto os novos escritórios.”
Ele destaca o trabalho da Una Arquitetos, responsável por projetos como a reforma do Palácio dos Correios e a construção do residencial Huma Klabin, na Vila Mariana. “A capital paulista, porém, seguirá sempre uma cidade sem memória, desobediente, sem tradição, com um transporte horroroso, cheia de contrastes”, pontua. Mas por que teimamos em amar tanto esse lugar caótico? “Porque São Paulo, ainda assim, permite uma excelente convivência entre as pessoas.”
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 29 de janeiro de 2020, edição nº 2671.