Egberto Gismonti faz show em São Paulo: “A música não impõe nada”
O pianista e violonista fluminense, que se apresenta no Blue Note neste sábado (2) com o músico Daniel Murray, fala sobre os seus próximos projetos

A liberdade de criação e expressão é a máxima de Egberto Gismonti, 77, um dos músicos brasileiros mais respeitados mundo afora, que se apresenta neste sábado (2) no Blue Note São Paulo.
Ao lado do violonista Daniel Murray, o repertório terá peças autorais, improvisações, releituras — composições marcantes da extensa carreira de Gismonti, como Água e Vinho e Palhaço, não devem faltar.

Virtuoso no violão e no piano, o músico fluminense traçou uma trajetória singular a partir da sua participação no 3o Festival Internacional da Canção, em 1968, e o seu disco de estreia, Egberto Gismonti (1970). Estudou em Paris com compositores como Nadia Boulanger (1887-1979) e Jean Baraqué (1928-1973), e veio a se consolidar nas décadas seguintes como um dos principais representantes da música brasileira no exterior, com discos clássicos como Dança das Cabeças (1977), gravado com Naná Vasconcelos (1944-2016).
“O meu estilo é fazer tudo que dá vontade. É isso que eu faço na vida”, define Gismonti, que já lançou 70 álbuns e compôs trilhas para dezenas de filmes, balés e peças de teatro. Há mais de vinte anos, mantém o selo Carmo, distribuído pela gravadora alemã ECM Records, que lançou diversos artistas, inclusive o álbum Universo Musical de Egberto Gismonti (2019), de Daniel Murray.
Confira, a seguir, um papo sobre música, por um dos seus mestres.
Egberto, para começar: como você conheceu o Daniel Murray, que tocará com você no show deste sábado (2), em São Paulo?
Com o passar desses 55 anos de exercício profissional, cheguei a um número imenso de projetos feitos, com músicas de cinema, de balé, discos. Isto porque sou curiosíssimo e continuo sendo, e tive a sorte de ter bons parceiros que indicaram os melhores caminhos. Não é por capacidade, e sim porque aprendi com a minha família, de árabes e italianos, a chave da esperança de bem viver. Desde muito cedo meu pai ensinou o significado do trabalho, o que nos deu a consciência de que na vida você precisa decidir o que quer. Mesmo que decida errado, troque e encontre o que faz de melhor. Na medida em que, depois de 35 anos de trabalho, entendi que poderia montar uma gravadora, a Carmo, que hoje é produtora associada da SM Records, na Alemanha. Já foram lançados 51 discos por artistas que dedicaram obras inteiras à minha música. Por essa razão conheci gente para danar, incluindo o Daniel. Ele estava preparando um disco com o meu repertório, e perguntou se eu toparia ser o produtor, no estúdio. Eu disse que não, mas que topava produzir o disco no meu selo, e lançar pela Europa em mais de 40 países. E não deu outra. O Daniel não só lançou esse disco, mas há pouco tempo convidei ele para fazer um ano de trabalho comigo, para fazermos shows e gastarmos um bom tempo treinando juntos, para tocar tranquilo. Não é só ficar em casa estudando, ficar em casa é estudar o que você vai fazer. Não interessa o quanto você estuda, e sim o quanto você aprende a treinar. Treinar é a admissão do contraditório, ou seja, você convive com erro e aprende ele, às vezes, é muito melhor.
“O meu projeto é distribuir coisas que já foram feitas, porque tenho 70 discos lançados. Claro que continuo gravando, mas, se o cara já gravou setenta, o 71o é só mais um”
Sua filha, Bianca, pianista, lançou em novembro um disco dedicado à sua obra, Gismonti 70 (2024). O seu outro filho, Alexandre, é violonista. Como é ver a sua musicalidade refletida na sua família?
Há alguns anos, quando ela me mostrou as primeiras gravações, ela perguntou o que eu achava. Eu ouvi e fiz uma série de observações, dizendo que, se ela lançasse daquele jeito, poderia pegar péssimo, porque ela estava tocando radicalmente diferente da origem da composição. Conversamos e ela decidiu adiar o disco. Passaram-se alguns anos, ela fez o lançamento recentemente, e, quando me mostrou, ri do início ao fim, porque ela fez uma beleza. Não é que pareça eu tocando, mas ela seguiu o pensamento que me conduz: a liberdade de expressão. A música, como linguagem, difere de qualquer outra por um fator: ela não impõe nada, ela propõe. Por exemplo, nos primeiros discos que fiz, comecei a regravar as minhas músicas, porque descobri coisas erradas que queria corrigir. O Alexandre e a Bianca sabem que o importante não é acertar, e sim terminar uma apresentação olhando para o público feliz de ter ouvido o que eles tocaram. É isso que interessa. Não faça julgamento do que você faz ou cria. O julgamento tem que ser feito pelo outro, ou você acaba acreditando que é uma maravilha ou uma porcaria. Para mim, existem dois tipos de música: aquela que me estimula e me faz acreditar que serei salvo através dela, e aquela que ainda não descobri como me proporcionar essa liberdade.
Nessa altura da sua carreira, quais são os seus próximos projetos?
Fiz uma decisão muito pessoal, de cinco anos para cá. Fiz três projetos com orquestras de excelência, uma da Lituânia, além da Sinfônica da Dinamarca e da Filarmônica de Tóquio. E fiz questão de pedir nos contratos que, passados dez anos das gravações, eu teria o direito de fazer um acordo de lançamento desses concertos. Se ainda não saiu, é porque quero lançar a custo zero, quero presentear o disco físico. Em compensação, tenho a ideia de, através de uma rede social qualquer, deixar algumas perguntas para quem quiser ouvir esses discos responder e receber uma senha para baixar os arquivos, com a promessa de não imprimir nada. No fim dos anos 80, fiz uma turnê por 12 estados, patrocinada pelo Banco do Brasil, com uma orquestra de 42 músicos, e tenho todas as gravações dos concertos. Quero que esses discos sejam escutados no Brasil. Então o meu projeto é distribuir coisas que já foram feitas, porque tenho 70 discos lançados. Claro que continuo gravando, mas, se o cara já gravou setenta, o 71o é só mais um. Isso não é novo. A minha pretensão é essa. Não tenho certeza se vou durar mais um, cinco, nove ou onze anos. Enquanto der, a minha intenção é continuar fazendo amigos como o Daniel. Não tenho nada a reclamar do destino que me propôs ser músico, até porque foi minha família que me fez assim. Não me sinto proprietário de nada, o direito autoral serve para isso, você tem os direitos que as obras podem gerar. Ou seja, se hoje quero fazer coisas diferentes, é produzir em massa ou conseguir o direito legal de colocar à disposição vários discos que nunca foram lançados. O meu objetivo é esse.
18 anos. Blue Note São Paulo. Avenida Paulista, 2073, 2o andar. ♿ Sáb. (2), 20h e 22h30. R$ 200,00 a R$ 320,00. eventim.com.br.