‘Saudosa Maloca’: Adoniran Barbosa ganha filme que revela sua atualidade
Dirigido por Pedro Serrano, longa-metragem celebra o ícone do samba paulista e um dos maiores personagens da cidade de todos os tempos
Um batuque em caixinha de fósforos, cortado por marretadas em uma parede, é o primeiro som que escutamos no filme Saudosa Maloca.
Dirigido por Pedro Serrano, 37, o longa — apresentado pela Pink Flamingo Filmes e distribuído pela Elo Studios — que chega aos cinemas no dia 21 tem Adoniran Barbosa (1910-1982) como protagonista, mas não é uma cinebiografia. Também não é 100% ficção. É, acima de tudo, uma homenagem poética ao universo do sambista — a história se divide entre os anos 50, com o artista ainda antes do sucesso, rodeado por personagens dos seus sambas, e os anos 80, já no fim da sua vida.
A ideia do filme nasceu há mais de uma década. “Usei um samba dele em um trabalho universitário. Então fui ouvindo os outros, todos crônicas com histórias, e, escutando Saudosa Maloca, pensei: essa história é tão paulistana e está tão enraizada no nosso imaginário, dá para fazer um filme”, conta Serrano.
O roteiro original, que dá vida a nomes citados em canções, foi lançado primeiro como um curta-metragem, em 2015, com o mesmo trio principal: Paulo Miklos como Adoniran, Gero Camilo como Mato Grosso e Gustavo Machado como Joca.
“Eu precisava de um ator cantor. Ouvindo uma entrevista do Paulo no rádio, com aquele timbre de voz mais rouco, de ex-fumante, e, conhecendo seu trabalho, vi que era perfeito para o papel. Ele aceitou de primeira. Depois vieram os nomes do Gero e do Gustavo, que são atores que admiro demais”, diz o diretor.
Em 2018, ele ainda lançou o documentário Adoniran — Meu Nome É João Rubinato, este sim todo com material biográfico. O longa-metragem com a proposta inicial só veio a ser gravado em janeiro de 2023.
“Demorou esse tempo simplesmente porque é muito difícil fazer cinema no Brasil. Levamos esse período todo para conseguir os fundos, seja através de patrocínio, editais públicos… vivemos muitos percalços”, conta o cineasta.
Entre os obstáculos, ele cita a pandemia, o governo Bolsonaro (2019-2022) e a desistência de patrocinadores. “Houve dificuldade de aceitarem o Adoniran como algo possível de se investir dinheiro e ter público, por pensarem que não comunica com as gerações mais jovens. E, no governo passado, os processos no cinema ficaram completamente abandonados”, afirma.
O roteiro, assinado por Serrano, Guilherme Quintela e Rubens Marinelli, tem como fio principal a história contada na música-título. “É uma letra sobre um tema real. Havia um sobrado na Rua Aurora que foi demolido para a construção de um prédio”, afirma Sergio Rubinato, 79, sobrinho do sambista.
“Optei por criar o meu Adoniran pessoal, diante do risco de fazer uma caricatura. Acho que fica mais rico assim. Ele ganha vida, como os personagens das músicas”
Paulo Miklos
Naquela São Paulo dos anos 50 retratada no longa, surgem outras figuras de músicas, como Iracema, interpretada por Leilah Moreno, 39. Segundo Rubinato, a música não fala de uma paixão do seu tio. “Ele estava lendo um jornal pela manhã, tomando um café, e viu que uma pessoa chamada Iracema foi atropelada na Consolação”, conta. Quem conhece a fundo as músicas de Adoniran pode pescar alguns easter eggs, referências discretas a letras ao longo do filme.
Não é sempre que podemos ver Paulo Miklos, 65, cantando samba, um gênero raro em sua carreira solo e na discografia dos Titãs. “Foi uma delícia interpretar as músicas, porque estou cantando ao vivo, no set. Minhas duas maiores paixões se cruzam nesse momento”, diz o ator e cantor paulistano.
O sotaque italiano, os bordões hilários e o dicionário único de Adoniran são uma diversão à parte nos diálogos. “O Pedro fez um glossário de termos para podermos estudar e falar fluentemente. Isso foi muito bom, porque a gente ficou solto em cena”, conta Miklos.
A boa dose de comédia do enredo é resultado da química entre os três moradores da maloca. “Tem várias cenas de improviso. Isso foi possível graças à confiança que conseguimos no curta”, diz Gustavo Machado, que brilha ao lado de Gero Camilo.
Para Miklos, a ideia não foi fazer uma imitação do sambista. “Optei por criar o meu Adoniran pessoal, diante do risco de fazer uma caricatura. Acho que fica mais rico assim. Ele ganha vida, como os personagens das músicas”, diz.
Adoniran era, de certo modo, um personagem de si mesmo. Nome artístico de João Rubinato, nascido em Valinhos, o artista traçou carreira como radioator antes de se consagrar na música. Na década de 40, na Rádio Record, conheceu o escritor Osvaldo Moles (1913-1967), autor de personagens protagonizados pelo ator até o início dos anos 60, como Zé Cunversa e Charutinho.
A consagração de Adoniran como compositor só viria em 1955, com a gravação de Saudosa Maloca pelos Demônios da Garoa. Alguns pedaços dessa biografia aparecem no filme, como a história da rádio, mostrada no edifício original, o Palacete Tereza Toledo Lara, na Sé.
A cidade é o grande plano de fundo do filme. A maloca e o boteco principal foram recriados na Vila Itororó, no Bixiga. O Viaduto Santa Ifigênia, a Vila Maria Zélia e o interior do Edifício Itália são outras locações usadas nas gravações. E, mais que um cenário, a metrópole em transformação é um dos principais conflitos da trama. “Eu diria que o tema do filme é o progresso.
Era fundamental trazer, além dos personagens e do bom humor, uma reflexão sobre esse processo de especulação imobiliária que vivemos. Às vezes me perguntam a razão de resgatar o Adoniran nos dias de hoje, e não é só porque ele merece, mas também porque ele segue sendo muito atual”, diz Serrano.
Morto há mais de quarenta anos, não é só a sua obra musical que leva Adoniran a continuar sendo uma completa tradução de São Paulo.
“No ano passado, fui em nome dele receber o título de Cidadão Honorário de Campinas e fiquei muito emocionado. Vi as pessoas tocadas com o significado cultural dele, de ser o artista popular mais representativo, não só da cidade, mas do estado de São Paulo”, diz Alfredo Rubinato, 52, neto do sambista e atual titular dos direitos do músico.
Para Sergio, a importância está nos assuntos que seu tio abordava. “Ele não ficou esquecido. Falar de favela, enchente, não caiu no passado. Isso colabora para que as gerações futuras conheçam ele”, diz.
Para Miklos, isso que faz do filme “atualíssimo”. “O Adoniran foi um cronista muito agudo, que trazia toda uma crítica social colocando a linguagem do povo nas canções. Os causos sempre trágicos, mas com muito humor. O filme fala muito da São Paulo de hoje”, resume o ator.
Adonirês
Seis normas de linguagem usadas pelo elenco.
1 » As consoantes T, D e R sofrem grande influência do seu sotaque italiano, sendo bastante acentuadas.
2 » O L é trocado pelo R, quando posicionado no meio da palavra, como em “úrtimo”, “vorta”, “carma” e “crínica”.
3 » Os verbos conjugados na primeira pessoa do plural costumam ganhar a letra E no lugar do A, e são quase sempre ditos sem o S final. “Ficamos” vira “fiquemo”, “voltamos” vira “vortemo”.
4 » As palavras que terminam com R são pronunciadas sem essa letra. “Fazer” vira “fazê”, e “mulher” vira “mulhé”.
5 » A letra A é inserida antes da palavra em alguns verbos. “Voava” vira “avoava”, e “chegou” vira “achegou”.
6 » O plural é utilizado no artigo, mas ignorado na palavra subsequente. “As ambulâncias” vira “as ambulância”, e “as coisas” vira “as coisa”.
O ator e o escritor
“É impossível falar de Adoniran de verdade sem falar de radioteatro e Osvaldo Moles”, afirma Tomás Bastian, 44. O paulistano, doutor em filosofia, é o idealizador do Núcleo Rubinato, grupo criado em 2009 com intuito de pesquisar a obra menos conhecida do ícone paulista.
O último lançamento do projeto é o radiolivro Histórias das Malocas (Edições Vagulino, R$ 60,00), que resgata o popular programa radiofônico escrito por Osvaldo e estrelado pelo ator e cantor entre os anos 50 e 60. “Foi o programa mais famoso da época no rádio paulista, semanal, ficou no ar por dez anos, mas não encontramos até hoje nenhuma gravação”, conta o pesquisador.
Foi então que o grupo decidiu lançar, em livro, quatro dos setenta roteiros originais recuperados, e, em áudio, as adaptações desses textos, interpretadas pela equipe com participações de Jorge de Magalhães, o narrador original, e Sergio Rubinato, sobrinho de Adoniran. Outros frutos da pesquisa também estão incluídos na publicação, como quarenta esquetes e um glossário com 190 verbetes, o “decionáurio” — todos os textos do livro possuem versões em áudio, disponíveis nas plataformas digitais.
“Todo mundo conhece Saudosa Maloca, Samba do Arnesto, Trem das Onze e reconhece: isso é Adoniran. Só que, com um pouco mais de pesquisa, vemos que, antes de escrever essas músicas, ele passou dez anos mergulhado no radioteatro, com Osvaldo Moles”, diz Bastian.
Para ele, o escritor foi crucial na construção do estilo de Barbosa. “Moles percebeu a veia cômica do Adoniran e começou a criar milhares de personagens que, desde os primeiros roteiros, já usavam a linguagem toda errada. Ele é talvez a principal influência para o Adoniran criar o seu estilo, interpretando essas figuras do povo pobre de São Paulo”, diz.
Publicado em VEJA São Paulo de 15 de março de 2024, edição nº 2884