Alfredo Volpi muito além das bandeirinhas
Livro revela intimidade do artista que vivia modestamente no Cambuci rodeado de crianças adotadas e teve obras falsas lançadas no mercado pela própria filha
Mesmo quem não conhece arte é capaz de identificar a maioria dos quadros do ítalo-paulistano Alfredo Volpi (1896-1988), um dos nomes mais importantes da pintura brasileira no século XX. Suas belas bandeirinhas têm traços inconfundíveis, cores fortes e um estilo que, à primeira vista, pode lembrar azulejos de parede ou decoração de festa junina. Calcula-se que, em 92 anos de vida e setenta de pintura, ele tenha produzido cerca de 3.000 telas, das quais 2.239 estão registradas pela Associação para a Catalogação da Obra de Alfredo Volpi. Em parte, esses trabalhos pertencem a antigos colecionadores que frequentaram durante décadas a residência do artista, na Rua Gama Cerqueira, 154, no Cambuci, região central da cidade, para entrar na fila de qualquer uma de suas produções à venda — e que ficaram conhecidos no meio como volpistas.
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Um dos mais fiéis desses volpistas, o engenheiro Marco Antonio Mastrobuono, também presidente do Instituto Alfredo Volpi de Arte Moderna (Iavam), acaba de lançar um revelador livro sobre ele. Em Alfredo — Pinturas e Bordados (Iavam, 352 páginas, 1.000 exemplares fora do comércio), o autor afirma que, nos últimos três anos de vida, Volpi estava senil, perdera a coordenação motora, enxergava mal e quase não reconhecia as pessoas. Apesar disso, na mesma época saíram de seu ateliê dezenas de quadros e centenas de gravuras — na verdade, fotos de trabalhos transformados em litogravuras — com assinatura em surpreendente letra firme e, no verso, uma declaração de autenticidade de Eugênia Maria Volpi Pinto, sua única filha biológica. “Hoje, as tais gravuras custam menos que suas molduras”, afirma Mastrobuono. Ele dá a entender que as telas surgidas nos derradeiros anos do artista foram criadas ou finalizadas a partir de esboços por Eugênia Maria e seu marido, Jese Pinto. A suspeita não é nova. Em 1993, numa entrevista ao repórter Luís Antônio Giron, da Folha de S.Paulo, Djanira Volpi, uma de suas filhas adotivas, declarou que Eugênia Maria e Jese “drogavam meu pai e o faziam assinar o que pusessem na sua frente”. O livro aprofunda a história e mostra como a desconfiança em torno das supostas últimas obras chegou a desvalorizar os preços dos quadros em até 40%. Mas isso mudou, e, sopradas pelo mercado de arte, as bandeirinhas autênticas voltaram a tremular triunfalmente em leilões e galerias. “Um quadro pequeno dele sai hoje por, no mínimo, 250.000 reais, e alguns grandes podem ser avaliados em 5 milhões de reais”, estima o marchand Jones Bergamin, da Bolsa de Arte do Rio de Janeiro.
Originário de Lucca, na Toscana, com 1 ano de idade Volpi foi trazido pelos pais para São Paulo. Morou com eles até os 47 anos. Para ganhar a vida, trabalhou como encadernador, decorador e pintor de paredes. Aceitava encomendas para pintar sobre tela fotografias, santinhos e cenas de pescaria. “Fui io que fiz, ma non è mio”, dizia, na linguagem do imigrante que nunca dominou bem o português. Só passou a viver da pintura já perto dos 50 anos, em 1944, quando vendeu todos os quadros de uma exposição realizada na então elegante Rua Barão de Itapetininga. Segundo registrou na ocasião o respeitado crítico Sérgio Milliet, foi a primeira vez que isso aconteceu em uma mostra de arte moderna no Brasil.
Pouco tempo antes desse primeiro grande sucesso, Volpi havia se casado com Benedita da Conceição, apelidada de Judite, descrita pelo jornalista e cineasta Olívio Tavares de Araújo, um dos maiores especialistas em sua obra, como “uma mulata gaúcha bonita e benfeita de corpo, que nos anos 40 posou para um nu hoje famoso”. Depois do nascimento de Eugênia Maria, os dois adotaram inúmeros filhos. Nas contas de Tavares de Araújo, em 1950 o casal chegou a ter dezenove crianças em casa. Volpi e Judite ficaram juntos até ela morrer, em 1972.
Viúvo, ele tinha uma vida modesta. Costumava comer sozinho em casa, exceto quando os volpistas o levavam para almoçar no antigo restaurante Ca’d’Oro da Rua Basílio da Gama, no centro, onde ele pedia rabada com polenta e bebia o vinho siciliano Corvo Duca di Salaparuta. Jamais teve carro e não aprendeu a dirigir. No livro, Mastrobuono descreve sua rotina: “Levantava cedo e caminhava pelas ruas do Cambuci. Se a luz fosse boa, pintava. Caso contrário, preparava novas telas. Fazia tudo. Serrava madeira e montava chassis. Cortava as telas e pregava-as no bastidor. Preparava a têmpera a ovo e guardava-a na geladeira, em frascos de vidro”. Para se distrair, jogava paciência com um baralho encardido. Os volpistas lhe davam baralhos novos, mas ele usava apenas o velho. Não assinava recibos e, anarquista convicto, só pagava impostos quando era intimado. Nenhum de seus quadros trazia data. Andava de tamanco ou chinelo, fumava cigarro de palha, adorava sopa de alho e detestava formalidades. Quando fez 80 anos, foi chamado pelo governador Paulo Egydio Martins para almoçar no Palácio dos Bandeirantes. Recusou o convite. “O que vou fazer em um palácio?”, justificou. “Por que ele não vem aqui?” Paulo Egydio foi até o Cambuci, comeu macarronada e, na saída, recebeu como presente uma daquelas gravuras que deixariam de ter valor comercial. Na hora de assiná-la, depois de pensar um pouco, o pintor perguntou: “Eh! Como é mesmo o seu nome?”. O mundo de Volpi era outro.