Baseado em livro, musical de Ray Charles estreia em novembro
Montagem, adaptada da obra escrita pelo filho do Rei do Soul, entra em cartaz no Teatro B32, já cercado de grande expectativa
No dia seguinte ao enterro do pai, Ray Charles Junior acorda de madrugada na casa da família, em Los Angeles. Ele se vê como criança e se depara com o fantasma do patriarca. Num delírio entrelaçado por memórias do garoto, o espetáculo Ray — Você Não Me Conhece, traça, ao longo de quase duas horas, a trajetória de um dos artistas mais importantes da música mundial, pioneiro da soul music, Ray Charles (1930-2004).
Com estreia no dia 1o de novembro, no Teatro B32, a peça tem como ponto de partida o livro homônimo de Charles Junior, primeiro homem e segundo dos doze filhos do astro. “Eles têm o mesmo nome, sempre houve a expectativa de que o filho fosse seu sucessor, mas ele nunca fez algo realmente relevante. O livro toca em temas delicados, sempre com muito respeito, mas traz nas entrelinhas um certo ressentimento pelo pai nunca ter lhe dado muita atenção, nem ter confiado nele. É também um espetáculo sobre o fracasso”, revela o diretor e autor do texto, Rodrigo Portella.
A atmosfera tensa é aliviada por momentos de humor e grandes números musicais, como Vejinha pôde conferir em primeira mão durante um ensaio no último dia 21. “É algo entre um musical autobiográfico e uma ópera, mas tentei criar espaço para o improviso e o despojamento, como uma jam session”, completa Portella.
Talentos não faltam. Para interpretar pai e filho em diferentes fases da vida, cinco atores estarão em cena, como César Mello, celebrado por papéis em musicais, Sidney Santiago Kuanza, Abrahão Costa e Luiz Otávio, pianista, também cego, que faz sua primeira incursão no teatro. “É maravilhoso estrear num papel tão emblemático, desse gênio que quebrou padrões e fez com que a sociedade o enxergasse”, ressalta. Flávio Bauraqui completa o naipe de “Rays”, no papel do fantasma do rei do soul.
Premiada pelo seu desempenho em A Cor Púrpura, Letícia Soares oferece solos arrebatadores como Della Beatrice Howard Robinson, ou “B”, segunda esposa de Charles. E integra o potente coro inspirado nas Raelettes — o grupo vocal que acompanhava o cantor —, ao lado de Luci Salutes, Lu Vieira e Roberta Ribeiro.
Uma banda composta por piano, baixo, bateria e sopros executa clássicos como Hit the Road Jack e Georgia on My Mind, e composições originais de André Muato, que divide a direção musical com Claudia Elizeu. “A música de Ray Charles atravessa vários gêneros musicais. Mantivemos seu swing e espontaneidade para proporcionar uma viagem sonora”, conta ela.
A ficha técnica traz ainda o premiado designer gráfico Gustavo Greco, em sua estreia como cenógrafo, Karen Brusttolin no figurino e Gabriele Souza na luz. Por trás do projeto, que já estreia em meio a grande expectativa do público — os ingressos para as primeiras das cinco sessões semanais estão vendendo rápido —, está o idealizador Felipe Heráclito Lima, 40, responsável por sucessos recentes como Ficções, solo com Vera Holtz que está rodando o país e já completou mais de dois anos em cartaz.
Carioca que há cinco anos vive em São Paulo, ele vem trilhando um caminho próprio no teatro. Formado em artes cênicas, atuou na TV e no palco, foi produtor, mas encontrou outro lugar. Tocado por uma ideia, um texto ou um desejo, ele elabora projetos, capta os recursos e monta a equipe para sua realização. “Percebi que havia um lugar na arte que não o palco. Um lugar mais voltado para o negócio, mas de realizações. Só faço o que me toca artisticamente”, diz ele, em seu 15o espetáculo.
Logo que adquiriu os direitos do livro de Ray Charles Junior — o autor leu e aprovou a peça —, o primeiro profissional que chamou foi Rodrigo Portella, seu parceiro em Ficções, outro jovem carioca, radicado em Barcelona, que tem escrito seu nome na história do teatro brasileiro com trabalhos como Tom na Fazenda e As Crianças (premiado por ambos). “Ele é um diretor muito inteligente e não tem vaidade. Vejo meu desejo artístico realizado e até potencializado com ele”, conta Felipe, que com a nova peça une dois desejos: o de homenagear Ray Charles e o de levar ao palco uma história sobre paternidade.
“Ele viu uma possibilidade de criar peças que fossem palatáveis para o público interessado em entretenimento, tanto quanto para aquele que busca uma reflexão mais profunda”, diz Portella. “Felipe está fazendo um trabalho importante ao trazer ao nosso público textos relevantes”, atesta a autora de novelas Duca Rachid, que, de certa forma, entrou no teatro pelas mãos do idealizador. “Ele realizou um grande sonho meu, que era adaptar As Brasas. Tentei durante anos comprar os direitos do livro e ele conseguiu rapidamente!”
Enquanto aguarda a estreia de mais uma obra, Felipe levanta uma versão de A Baleia, de Samuel D. Hunter, que originou o filme protagonizado por Brendan Fraser, vencedor do Oscar 2023, com José de Abreu, e outro musical baseado no repertório de Ana Carolina. Aplausos não faltarão.
Publicado em VEJA São Paulo de 25 de outubro de 2024, edição n° 2916