“Fazemos shows juntos como drag queens”
Fernando conta sobre sua relação com Mayna e como ela e o amor de sua família drag o ajudaram desde antes de sua transição de gênero
Antes de saber que eu era um homem trans, conheci Mayna em um grupo de Facebook de mulheres e pessoas não binárias que faziam drag queens. Nós nos encontramos na Rua Augusta com a intenção de criar um coletivo. Daí surgiram, em 2015, as Riot Queens. Eu e Mayna ficamos amigos e começamos a fazer performances juntos por quatro anos. Nossa química no palco é muito boa. Eu faço Pamella Sapphic, e ela, Cherry Pop. De eventos a recepção, fazíamos de tudo. Festas drags em são Paulo era o que não faltava.
Eu flertava com a montação de drag queen desde que tinha 12 anos, mas não sabia que havia esse nome. Fazia showzinhos na escola e gravava vídeos para o YouTube. Meus pais achavam que eu era menina, então, quando me viam enchendo a cara de maquiagem e fazendo umas coisas malucas, só me consideravam meio doida.
Já Mayna foi influenciada pela avó que amava teatro e o quadro Concurso de Transformistas, do antigo Programa do Silvio Santos, que ela via aos 4 anos e guardou na memória.
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Em shows que fazíamos separados, um ajudava o outro. É comum o sentimento de irmandade entre as drags. Já passei horas colando pedrinhas no vestido dela. Criamos um vínculo forte, mas nada saía do papel porque sempre estávamos nos relacionando com outras pessoas. Passamos de uma mãozinha com o figurino, peruca e cenário para desabafos e conselhos. Quando ambas terminaram e ficaram na bad, começamos a dar rolê juntas. A nossa mãe drag, Malonna, mais famosa que a noite de Paris, publicou no Facebook que as filhas dela estavam ‘solteiras, livres e desimpedidas’. Não adiantou nada porque acabamos nos relacionando entre nós: um produtor de festas drags em São Paulo encomendou um show com o título da música de Chico Buarque, O Meu Amor, da Ópera do Malandro. Conforme ensaiávamos, nossa química acabou vazando do palco. Foi natural.
No meu aniversário, dei a Mayna um grande leque de plumas brancas. Queria que o presente demonstrasse que eu queria algo a mais, mas sem pressioná-la. Eu já dormia quase todos os dias na casa dela, mas tinha medo de entrar em um novo relacionamento. Acabou que foi ela quem me pediu em namoro.
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A situação ficou mais leve. Não precisávamos fingir amizade, jogar tudo para debaixo do tapete e dizer que era apenas profissional. No primeiro aniversário de relacionamento, saí do meu trabalho, na Paulista, e fui até a Granja Julieta encontrar Mayna para entregar um buquê. Ela chorou porque nunca tinha recebido uma declaração assim. Eu imprimi em uma gráfica um livro de capa dura com nossas memórias. Virou uma tradição e este ano estamos montando o terceiro volume juntos. Mayna também é romântica, mas não gosta que saibam que ela é sensível. Ela prefere dizer que tem um coração mais duro, mas não é bem assim. Mayna se dispõe a aprender coisas do meu mundo, como jogar videogame, para que a gente se divirta junto, e eu admiro isso. Acho fofo quando não estou em casa e ela atualiza meu jogo para que eu não perca meus bônus diários. São pequenas coisas no dia a dia que fazem o namoro funcionar melhor.
Em 2018, eu me entendi como transexual e Mayna acompanhou todo o processo de transição. Algumas pessoas LGBTQIA+ saem de casa cedo e perdem vínculos familiares, amigos e trabalho. Isso aconteceu comigo, e ter alguém que preenche esse vazio (no caso, Mayna e minha família drag) torna a situação menos complicada e solitária.
Resolvemos morar juntos. Como não parávamos em casa, alugamos uma quitinete no bairro da Liberdade. Mas logo veio a pandemia e passamos a dividir um único cômodo por 24 horas com três gatos. Pouco tempo depois, fiz minha mastectomia com a ajuda dela. Durante a cicatrização, ela me auxiliava no banho e nas refeições. Esse período colocou nosso namoro em prova. Mostramos quem realmente somos e deu supercerto. Começamos a financiar nossa casinha própria e temos muitos planos pela frente.”
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Publicado em VEJA São Paulo de 14 de julho de 2021, edição nº 2746