Marjorie Estiano: “O patriarcado mata”
Atriz se aprofunda nos estudos feministas para dar vida à protagonista da série 'Ângela Diniz: Assassinada e Condenada', que acaba de estrear no streaming
Com 27 anos de uma carreira premiada no teatro, no cinema, na televisão e na música, Marjorie Estiano, 43, está a mil. A atriz, que vive no Rio, está passando uma temporada a trabalho em São Paulo para gravar uma nova série. A cidade foi sua primeira morada, em 2002, quando saiu de Curitiba, sua terra natal, para tentar seguir a carreira. “Volto duas décadas depois e consigo ver outros aspectos da metrópole, que ainda é um centro do Brasil”, afirma.
Considerada umas das melhores atrizes de sua geração, Marjorie também está nos cinemas com o terror Enterre Seus Mortos e, em breve, com o thriller psicológico Precisamos Falar. Enquanto retorna ao set de filmagens, se dedica ao lançamento de uma das séries mais esperadas do ano, da qual é protagonista, Ângela Diniz: Assassinada e Condenada, que acaba de estrear na HBO Max.
A atriz acredita ter feito uma de suas personagens femininas mais revolucionárias, como nos conta nesta conversa. O projeto foi livremente inspirado no podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, e revela, com a devida complexidade, a história da socialite mineira que foi vítima de feminicídio, em 1976, e o julgamento do crime que se tornou um dos exemplos mais evidentes do machismo estrutural no sistema judiciário brasileiro.
Que autoras e feministas você leu para se preparar para interpretar Ângela Diniz?
Simone de Beauvoir, Rosiska Darcy de Oliveira, Amia Srinivasan, Annie Ernaux, Lélia Gonzalez e Djamila Ribeiro.
Como os livros dessas pensadoras a impactaram?
Quando você tem o amparo nas precursoras que teorizaram, você começa a entender melhor não só a sociedade, mas a sua formação. O letramento te faz atribuir mais significado aos contextos, aos ambientes e à organização da sociedade. Isso faz você se questionar em relação às suas escolhas diante de coisas que pareciam simplesmente naturais. Nos faz entender como, por exemplo, a desigualdade de gênero se manifesta e sobre a cobrança da eterna juventude do corpo feminino.
Como identificou ao longo da vida a pressão do patriarcado nas suas escolhas?
Reconheço as violências com mais clareza a partir dessas leituras. No ginásio, por exemplo, havia um corredor para entrar na sala de aula. Os meninos ficavam na parede e as meninas tinham que passar no meio. Era sempre uma sensação de pressão, como se fosse um corredor polonês. E a gente tinha que botar a pasta da escola na bunda porque os meninos estavam ali para passar a mão. Aquilo se dava como se fosse uma brincadeira autorizada. Os meninos constrangiam as meninas, e isso era naturalizado.
Que ferramentas de proteção você criou para sobreviver num mundo tão violento e patriarcal como o nosso?
Na minha relação com o gênero masculino, usei sempre o humor como um subterfúgio de segurança do meu desejo de não ser desejada. Isso para não criar uma batalha, para eu não ter que ter um problema para fazer valer o meu desejo de querer ou não querer algo com tal rapaz. Voltar para essas escolhas a partir desses estudos me faz reconhecer melhor a violência da formação de gênero e da autoridade masculina. Sempre fui muito combativa, mas era machismo de certa forma também.
Na série, vemos você como uma personagem plena na beleza e sedução. Você sempre buscou ser mais discreta em relação à sua beleza?
Para eu ser uma mulher competente e levada a sério, a minha imagem não podia estar em primeiro lugar. Não poderia dar chance de, quando fossem falar sobre o meu trabalho, falarem sobre minhas características físicas ou meu valor pelo belo. Foi uma escolha machista nesse aspecto. Por outro lado, essa escolha também não está isolada, é um conjunto de coisas. Sou muito prática, sempre abri mão de tudo o que me desse mais trabalho no sentido de me arrumar.
Por que considera Ângela Diniz a personagem mais revolucionária que interpretou?
A Ângela tinha esse protagonismo, de gostar de holofote, de se sentir muito bem em ser olhada, o que é muito diferente de mim. Falar sobre uma mulher nesse lugar de prazer é algo pouco explorado no mercado. As personagens femininas estão sempre ou passivas ou voltadas para suas relações afetivas ou para a maternidade. Os temas femininos são muito restritos no audiovisual. Ter uma personagem como Ângela Diniz, que vive a vida com prazer, vai a festas, transa, bebe, curte a filha e vai à praia, é muito impactante. Ela não negociava seus desejos, era uma anarquista. Vivenciar as violências que ela sofreu mostra como o patriarcado mata e, se não mata, te deforma.
O machismo estrutural em que você mergulhou para fazer essa série perdura até hoje em que situações?
Só o fato de não ter direito ao próprio corpo legalmente já é um indício. Assisti a um julgamento, e eles explicam quais crimes serão julgados: infanticídio, tentativa de homicídio, homicídio e aborto. Imagine as mulheres que fizeram aborto dentro daquela cadeira de réu. O direito de existir da mulher e de fazer suas próprias escolhas ainda é muito cerceado.
Como mudar esse quadro?
A transformação da sociedade precisa ter amparo em diversas estruturas. Então precisa da Lei Maria da Penha, que nomeia a violência psicológica, patrimonial, física e o feminicídio. A lei da Mariana Ferrer obriga a não revitimizar a vítima durante o processo. A lei da Carolina Dieckmann pune a exposição não autorizada do corpo feminino na internet. Enquanto a mentalidade não for transformada, será preciso criar uma série de leis para garantir que a mulher consiga viver e ser protegida pelo Estado.
Você é tímida?
Não, sou mais reservada. Talvez por não querer dar muita satisfação. Minha vida pessoal não é entretenimento. Existem assuntos mais relevantes para se discutir.
Você se considera uma mulher livre?
Não, estou sempre em processo de libertação. Sou mulher, logo sou formada no patriarcado. Dentro do processo de estudos, você vai descobrindo quanto do machismo e do moralismo habita em você. Esse processo de libertação de gênero é para a vida toda.
Publicado em VEJA São Paulo de 21 de novembro de 2025, edição nº2971.
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