Othon Bastos estreia espetáculo com histórias dos seus 91 anos de vida
Em plena atividade, ator baiano apresenta monólogo pela primeira vez em São Paulo

Para Othon Bastos, pior do que as rugas do rosto são as rugas da alma — “só envelhece quem desistiu de viver”. Não é o caso do ator, que aos 91 anos estreia no Sesc 14 Bis, na próxima quinta (20), a peça Não Me Entrego, Não!.
“Esse espetáculo é uma visita a mim mesmo”, diz. “Não se trata de uma autobiografia, mas uma reunião de histórias interessantes de minha vida como ator, que faz o público rir, chorar e amar.”
Com passagens importantes sobre os 74 anos de sua carreira prolífica no teatro e no cinema, o monólogo esteve em cartaz no Rio de Janeiro e já foi visto por 40 000 pessoas. Depois de São Paulo, seguirá para Porto Alegre, Salvador, Fortaleza, Florianópolis, Belo Horizonte e Belém.

Para criar uma peça baseada em mais de sete décadas de atuação, Othon escalou um amigo de longa data, o dramaturgo, roteirista e diretor Flávio Marinho, a quem destinou uma sacola com quase 600 textos e anotações.
“Como diria Mário Quintana, eu não tenho paredes, tenho horizontes”, brinca. E eles são largos, garante o intérprete. Durante uma hora e quarenta minutos de apresentação, ele combina relatos pessoais com fatos da história brasileira a partir dos anos 1950. “Não estou falando de mim, mas comigo mesmo”, pontua.

Evitando assuntos íntimos, só abriu exceção para homenagear a atriz Martha Overbeck, sua companheira desde 1960 e com quem manteve uma companhia entre 1971 e 1984. E mesmo pautado em relatos do passado, o texto não beira o saudosismo ou a melancolia, garante. Pelo contrário: é construído em cima do humor sarcástico de Flávio e baseado num lema de vida que Othon gosta de disseminar: “Eu nasço contente todas as manhãs”, frase da poeta americana Emily Dickinson.
“Eu vi que havia muita história para contar sob a lente do humor, mas preservando momentos de emoção, que é o forte dele, conhecido pela potência emotiva cênica”, descreve Flávio. “E não é uma biografia laudatória, pois ele é muito crítico em relação a toda sua trajetória e debocha de si mesmo.”
Natural de Tucano, no sertão baiano, Othon mudou-se para o Rio de Janeiro aos 5 anos. “Mas a baianidade a gente não perde nunca. Carrego em todos os lugares. Fico sempre acreditando muito nos orixás, tenho amor e simpatia por eles.”
Depois, voltou à terra natal, a convite da Universidade da Bahia, para trabalhar na escola de teatro. “E construímos o Teatro Vila Velha. Conheci Caetano (Veloso) com 17 anos, na faculdade. Tenho um neto chamado Caetano, que fará 10 anos em julho. Ele soube, me olhou e disse: ‘Nome bonito, né?’.”
Em São Paulo, viveu os primórdios do Teatro Oficina, onde encenou peças como Pequenos Burgueses, Galileu Galilei e Na Selva das Cidades. Mas o reconhecimento do público veio em 1964, no longa Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, onde viveu o cangaceiro Corisco.

“Tudo aconteceu por acaso, após o ator designado para o papel ter saído da produção”, relembra Othon. Na ocasião, ele optou por desenvolver o personagem em estilo brechtiano, ou seja, criando um distanciamento emocional entre suas ações e o público. “Conversei com Glauber, na época um menino de vinte e poucos anos fazendo seu primeiro filme. Ele aceitou minhas mudanças. Depois disso, rejeitei papéis parecidos”, conta ele, que acredita ter ficado marcado pelo personagem épico a ponto de raramente ser chamado para fazer comédia.
“Nem todo mundo sabe, mas participei de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, no Teatro Oficina”, relembra. “Foi José Celso que conseguiu quebrar o mito de Corisco.”
O amigo de vida e profissão Otávio Augusto se lembra bem da peça. “Na época, ele fez Totó Fruta do Conde, uma travesti. E fazia com uma propriedade! Eu não falo isso pra ele, pra não ficar ofendido”, diverte-se. “No Oficina surgiu a amizade que mantemos até hoje. A gente brinca muito um com o outro, sempre nesse tom.”

O início da carreira no teatro foi determinante para moldar sua trajetória. Othon gosta de dizer que consegue fazer cinema e TV porque começou no tablado. “O teatro nos ensina tudo”, afirma. Cada vez que entra em cena, ele ainda pede licença aos “deuses do teatro” antes de se deixar levar pela energia inigualável e transformadora dos palcos. “Eu vejo o mundo através dos olhos dos personagens.”
Acima de tudo está o respeito pelo ofício, que antecede a profissão. Ele se refere à vez em que precisou tirar documentação para representar o filme Os Deuses e os Mortos, de Ruy Guerra, no Festival de Berlim, no início dos anos 1970.
“Como a profissão de ator não existia (a regulamentação só veio em 1978), fui obrigado a colocar ‘estudante’”, conta. “Tudo bem, porque, na vida, somos eternos alunos.”
Por esse longa, recebeu o prêmio de melhor ator no Festival de Brasília. “Othon é meu pai, a gente se chama assim. Ele foi meu primeiro pai, em Éramos Seis, a minha primeira novela quando ainda estava descobrindo a profissão. Depois, tivemos um reencontro em Império, que termina com a revelação de que éramos pai e filho”, conta Caio Blat.

“Na ditadura, sua presença em peças sempre nos atraía e mobilizava”, rememora o cineasta Lauro Escorel. “Ele era uma força nessa luta de resistência. Depois, quando fiz meu documentário O Libertário, foi a primeira pessoa que lembrei paranarrar e encenar.”
O cineasta Sérgio Rezende faz coro: “Sempre brinco com ele dizendo que um Othon basta!”, diverte-se. “Daqui a 100 anos, na caixa-preta do cinema brasileiro, ele vai estar lá. E vejo que esse seu espetáculo agora é a confirmação da minha brincadeira e tese. Ele vai lá sozinho e convulsiona o palco.”
Uma boa atuação, diz Othon, também está relacionada ao entrosamento entre ator e diretor. “Foi Gianni Ratto que me aconselhou a ler o texto pela primeira vez, refletir e guardá-lo, para ser lido novamente depois de conversar com o diretor do espetáculo”, conta.
Para ele, é a partir desse entrosamento que se chega a uma atuação consistente, a ponto de o ator se transformar no personagem, e vice-versa. “Todas as pessoas que passam pela nossa vida deixam um pouco delas e levam um pouco da gente”, acredita o ator, citando um provérbio chinês, um de seus mantras. “O corpo pode envelhecer, mas sigo caminhando para meu destino”, diz.
Agora, ele almeja apenas ter tempo e força para levar seu novo espetáculo por todo o país. “A vida já me deu muita coisa. Agora, deixo ela me levar.”
Sesc 14 Bis. Rua Doutor Plínio Barreto, 285, Bela Vista, ☎ 3016- 7700. Acessível a cadeirantes. Qui. a sáb., 20h. Dom., 18h. R$ 21,00 a R$ 70,00. A partir de 20/3. Até 21/4. sescsp.org.br

Senhor das telas

Aos 91 anos, o Othon Bastos brilha nos palcos com um espetáculo em que revisa sua carreira. Se o ator é soberbo no teatro, não há como esquecer que sua trajetória se confunde com a do cinema nacional. Desde a estreia em O Pagador de Promessas (1962) como um jornalista, foram mais de sessenta filmes.
A explosão nas telas ocorreu dois anos depois ao interpretar Corisco, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, marco do Cinema Novo dirigido por Glauber Rocha. O filme só é tão grande por causa da atuação de Othon.
Para mim em particular, o maior momento da filmografia dele é quando vive o latifundiário Paulo Honório, protagonista de São Bernardo, adaptação do cineasta Leon Hirszman para o magistral romance de Graciliano Ramos.
Embora fosse jovem para o papel, talhado para um homem de 50 anos — Othon tinha apenas 39 à época —, ele constrói um personagem à flor da pele, que usa de métodos nada escrupulosos para ascender socialmente. De lavrador, torna-se o ganancioso dono da fazenda onde trabalhou na infância.
Uma das frases ditas por Othon como Paulo Honório ainda reverbera na minha cabeça: “Estudei aritmética para não ser roubado além da conveniência”. Foi Paulo Honório que me aproximou de Othon Bastos.
Bem antes de ser fisgado pela gastronomia e trabalhar como crítico de restaurantes, sonhava em ser roteirista. Foi minha porta de entrada para o mestrado na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Durante o curso, fiquei perdidamente apaixonado pelo São Bernardo cinematográfico, uma obra-prima que não existiria sem seu ator principal.
O filme que estreou em 1973 por causa dos censores da ditadura militar, embora estivesse pronto um ano antes, foi o tema de meu mestrado, defendido na ECA-USP num distante 1996. Para enriquecer o texto, me enfiei na ponte aérea para entrevistar atores, diretor de fotografia e roteirista do longa. Uma conversa com Othon era obrigatória.
Lembro com carinho quando ele e a mulher, Martha Overbeck, abriram as portas do apartamento em Botafogo para uma longa e proveitosa conversa. Uma fidalguia com um estudante, fundamental para entender meandros do cinema. Aproveito o espaço para registrar minha eterna gratidão. (Arnaldo Lorençato)
Linha do tempo
- Nascido em Tucano, sertão da Bahia, Othon estudou teatro em Londres entre 1956 e 1957. Ao retornar, criou a Sociedade Teatro dos Novos, que construiu o Teatro Vila Velha, na Bahia.
- Em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), se consagrou ao encarnar o cangaceiro Corisco (na foto abaixo). O convite para o papel foi feito pelo diretor Glauber Rocha, que foi até a Bahia para encontrar o ator. “Glauber só sabia o bairro onde Othon morava, então subiu em uma caminhonete com um altofalante e começou a gritar ‘Aparece, Othon Bastos!’”, conta o roteirista Davi Kolb.

- A convite do Teatro Oficina, se mudou para São Paulo em 1967. Mais tarde, participou da novela Nenhum Homem É Deus (1969), da TV Tupi. Por lá, também fez Super Plá (1969), Mulheres de Areia (1973), Roda de Fogo (1978) e Aritana (1978).
- No cinema, estrelou vários clássicos, entre eles Os Deuses e os Mortos (1970), de Ruy Guerra, pelo qual venceu o prêmio de melhor ator no Festival de Brasília, e São Bernardo (1971), de Leon Hirszman, baseado no romance de Graciliano Ramos, que também lhe rendeu um prêmio no Festival de Gramado.

- Durante o regime militar, foram várias as peças contra a ditadura, entre elas Um Grito Parado no Ar (1973), Caminho de Volta (1974), Ponto de Partida (1976), Murro em Ponta de Faca (1978) e Calabar — O Elogio da Traição (1980), todas na companhia teatral que manteve com a companheira, Martha Overbeck.
- Sua estreia na Globo aconteceu em 1979 com o programa Aplauso, que exibia encenações de peças de diversos autores. Nas novelas só foi ingressar em 1985, primeiro como o bandido Ronaldo, em Roque Santeiro 3 . Em seguida vieram Tenda dos Milagres (1985), Selva de Pedra (1986) e Pacto de Sangue (1989).

- Nos anos 1990, foi destaque na minissérie O Portador (1991), de José Antônio de Souza, que abordava o tema da aids. Em 1992, integrou o elenco de Felicidade (1991), novela das 6 de Manoel Carlos. Também interpretou o criminoso Jorge, em Despedida de Solteiro (1992).
- No início dos anos 2000, fez várias tramas de época, como Aquarela do Brasil (2000), A Padroeira (2001) e O Quinto dos Infernos (2002). Dos seus muitos vilões, um dos mais emblemáticos foi o mordomo Silviano (na foto abaixo), da novela Império (2014), de Aguinaldo Silva.

Publicado em VEJA São Paulo de 14 de março de 2025, edição nº 2935