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“A arte deve pautar o mercado, e não o contrário”, diz Tulipa Ruiz

Lançando seu primeiro disco de inéditas em sete anos, a cantora paulista conversa sobre a nova fase, o imediatismo do mercado e sua função como artista

Por Tomás Novaes
Atualizado em 27 Maio 2024, 21h30 - Publicado em 23 set 2022, 06h00
Tulipa Ruiz. (Kendy Higashi/Divulgação)
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“Esta é a primeira vez que eu falo sobre o disco. Antes eu só estava fazendo ele”, brinca a cantora, compositora e ilustradora Tulipa Ruiz, 43. Ela conversou com a Vejinha sobre a estreia do primeiro disco de inéditas em sete anos, Habilidades Extraordinárias (2022), que vai ser lançado nesta sexta (23).

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Nascida em Santos e criada em São Lourenço (MG), a artista, moradora do Alto de Pinheiros, tem a música paulistana na veia: é filha do guitarrista Luiz Chagas, membro da banda Isca de Polícia, que acompanhou o vanguardista Itamar Assumpção (1949-2003).

Com parceria fiel com o irmão Gustavo Ruiz, produtor de todos os seus álbuns, Tulipa deslanchou na carreira já com o trabalho inaugural, Efêmera (2010), e seguiu a romper os limites imaginados para uma artista independente, com um Grammy Latino na conta. Confira o papo sobre essa nova fase.

Qual a história do nome do disco, Habilidades Extraordinárias?

Eu trombei com esse termo em 2019, quando fomos, eu e meu irmão, tirar um visto de trabalho para os Estados Unidos. Íamos tocar no Lincoln Center, em Nova York. A entrevista estava superburocrática e demorada quando o funcionário do consulado fez esta pergunta, se a gente tinha alguma “habilidade extraordinária”. Não sabia que esse era um tipo de visto, então na hora me veio a ideia de algo muito fantástico, sobrenatural. Automaticamente, e bem sem graça, respondi que não. Mas o Gustavo rapidamente disse: “Sim, a gente ganhou um Grammy”. Nessa hora, o cara nos deu parabéns e carimbou o nosso visto. O tempo passou, a pandemia chegou, e fui vendo que habilidades extraordinárias passaram a ser coisas muito mais cotidianas do que hercúleas. É realmente sobre estar vivo.

Como foi o processo de criação do álbum?

Não tenho o exercício cotidiano de compor, tenho períodos de composição. Eu e Gustavo viajamos para a casa de uma amiga nossa em Ubatuba, em junho, e reservamos esse momento para criar. A gente gravou o disco muito rápido, intenso. Eu ainda estou entendendo o que aconteceu, o processo todo pareceu um furacão. Fomos surpreendidos pela nossa própria empolgação, e nove das onze músicas a gente fez ali naquele momento, gravadas em fita. A primeira foi Samaúma, que deu a sonoridade do álbum — e, por isso, é a abertura do disco e o single.

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Horas antes de você anunciar o novo disco, um colunista publicou uma crítica sobre a falta de trabalhos inéditos na sua carreira. Como você reagiu?

Achei engraçado, foi uma supercoincidência. Sempre fui muito no meu tempo, demorei para gravar o meu primeiro disco, só fui fazer com 30 anos. Neste ano já toquei em tantos lugares, em tantos festivais, e nem lancei o novo projeto. Demoro para fazer um disco e amo fazer show — os meus álbuns são resultado de tudo o que acontece em turnê. Além disso, de 2015 para cá, fiz tantas coisas como compositora. Venho cada vez mais me sentido muito mais forte para compor. E, afinal, sou filha de jornalista, meu pai é guitarrista e crítico musical, então essa pressão nunca me machucou.

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Como vê a pressão imediatista do mercado?

Sei que o mercado mudou, que as pessoas não consomem necessariamente discos e que você pode lançar várias coisas picadas, mas gosto de fazer disco. E os meus processos são demorados. Não é fácil gravar um álbum, só consigo fazer os meus porque tenho a facilidade de o sócio no meu estúdio ser o meu irmão. A gente desenvolveu uma operação sustentável. O que devo celebrar, na verdade, é estar fazendo música da maneira que acredito. E acredito que a arte deve pautar o mercado, e não o contrário.

“Desde o primeiro show que fiz fora do Brasil eu entendi que a gente tem a responsabilidade de contar o que acontece aqui”

O que significou esse intervalo entre seus últimos projetos?

Depois do Dancê (2015), lancei o Tu (2017). Ele seria só de regravações, mas acabei incluindo duas músicas inéditas. A gente estava vindo de um impeachment que aconteceu de uma maneira monstruosa, o que desencadeou uma overdose de narrativas, de fake news — a informação começou a ficar saturada em tudo que é lugar, inclusive nas artes. Por isso, foi significativo não fazer um disco novo, mas um projeto em que o silêncio fosse o meu norte. O Tu é um disco no qual a gente não regrava nenhuma voz, nenhum violão. A gente fez quase sem tecnologia nenhuma. Foi importante para mim, naquele momento, não fazer concessão ao mercado. Tenho o privilégio de ter parceiros que me permitem realizar isso no meu tempo. Além de eu fazer 40 000 outras coisas fora a música para sobreviver — sou dona da Brocal Produtora, trabalho como ilustradora e tenho a minha marca de roupa. Isso me permite também tomar o meu tempo e não fazer concessões.

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As letras do novo disco são especialmente atuais, com destaque para Kamikaze Total. Como você absorveu o contexto social e político na feitura do álbum?

O disco tem essa coisa de falar do meu lugar como mulher, sobre as coisas que a gente não engole mais. E que bom que eu tenho esse lugar para poder falar sobre isso. Mas esse álbum foi feito também com um aperto muito coletivo, com um nó na garganta de tudo o que a gente está passando enquanto sociedade. E essas composições têm me salvado nos últimos dias. O processo foi muito catártico, não tive como segurar essas letras. Por exemplo, em Vou Te Botar no Pau, queria partir para uma indignação coletiva, plural. Essa música vem para ser aplicada a qualquer pessoa física ou jurídica.

E qual a função do seu trabalho como artista em relação ao país?

Desde o primeiro show que fiz fora do Brasil eu entendi a responsabilidade que a gente tem de contar o que acontece aqui. A imprensa sempre pergunta primeiro sobre o contexto político, em seguida sobre a cena musical, para depois chegar ao nosso trabalho. Me senti desamparada desde o primeiro minuto porque entendi que é a gente que conta essa história lá fora. E, por causa disso, nós deveríamos ser muito cuidadosos e ter políticas públicas pensadas para a gente. Porque temos a responsabilidade dessa narrativa, é muito grande esse papel. É um compromisso enorme dar conta dessas narrativas todas.

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Publicado em VEJA São Paulo de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808

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