Equipe brasileira estreia na Paralimpíada de Tóquio focada na saúde mental
Jogos começam no dia 24 no Japão com time se despedindo do ídolo Daniel Dias e sem competir há dois anos
A poucos dias do início dos Jogos Paralímpicos de Tóquio, no Japão, a delegação brasileira pode enfim comemorar algo. Sem competir oficialmente desde setembro de 2019, a maioria dos 255 atletas que representarão o país no Japão não conseguiu treinar de forma adequada desde o início da pandemia, em março do ano passado. Nem mesmo a tão esperada aclimatação no país oriental foi plenamente satisfatória.
Em 6 de agosto, 27 atletas foram colocados em quarentena porque um deles testou positivo para Covid-19 no desembarque de parte da delegação em Hamamatsu, a 250 quilômetros da capital japonesa. Por cinco dias, eles ficaram trancados em seus quartos e o caso só foi resolvido quando a principal estrela do esporte paralímpico brasileiro, Daniel Dias, gravou um vídeo reclamando do confinamento. “Todos estamos com os resultados negativos”, disse o atleta. Na terça (10), eles foram liberados para treinar, respeitando alguns protocolos.
A competição tem um gostinho especial para o paulista Daniel. Quando sair da água do Centro Aquático de Tóquio, em 1° de setembro, ele vai ter dado suas últimas braçadas como nadador profissional. Aos 33 anos, o atleta, que ostenta 24 medalhas paralímpicas, sendo catorze de ouro, sete de prata e três de bronze, quer cuidar da vida e da família em Atibaia, no interior. “Estou em paz. Quero desfrutar de cada momento e me divertir com a delegação”, disse o atleta antes de embarcar para o Japão.
Quando retornar ao Brasil, o vitorioso Daniel Dias vai focar também no levantamento de sua instituição, que chegou a atender trinta crianças, mas quase fechou as portas por causa da pandemia e por falta de patrocínios. “Vamos recomeçar em janeiro. O período da pandemia foi difícil, por ausência de verba e de incentivos. Mas quero estar à frente de tudo agora e sonharemos alto.”
“Entre nós não há coitadinhos. Somos atletas de alto rendimento. Também não vemos deficiência, mas eficiência.”
Susana Schnarndorf Ribeiro
Outro que sonha alto é colega de modalidade de Daniel. Aos 29 anos, Ruiter Silva, que nasceu em Goiânia e mora em São Paulo com a mulher e as duas filhas, diz estar tinindo para competir no Japão, mas nem sempre foi assim. “Em 2010, eu era recordista brasileiro, mas travei em uma competição. Fiquei com medo e deixei a prova. Sempre treinei bem, mas tinha dificuldade para competir”, conta. O drama o acompanhou por alguns anos, mesmo depois de disputar paralimpíadas , mundiais e panamericanos.
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No Rio, em 2016, ele ganhou medalha de prata no revezamento 4×100 metros. Mas a cabeça continuava lhe pregando peças. A saída estava no mesmo lugar e foi descoberta com muita ajuda psicológica. “Tratamos uma série de traumas da infância, sempre tive comigo que não podia errar, e conseguimos superar isso. Hoje vou a Tóquio com a cabeça lá”, comemora. O tratamento foi feito com a psicóloga Ana Lúcia Gomes Castello, que foi jogadora de vôlei e hoje utiliza uma terapia chamada EMDR (em português Dessensibilização e Reprocessamento através do Movimento dos Olhos).
Das piscinas para o tatame, a judoca Alana Maldonado, 26, estreia na Paralimpíada em 29 de agosto. Moradora da Mooca e prata nos jogos do Rio de Janeiro, a atleta também sofreu para chegar ao Japão. “Com a pandemia, perdemos muitos meses de treino. Embora o judô não demande muito espaço, sem adversários não conseguimos fazer muitos treinos específicos.” Mas o tempo não foi perdido, não. “Aproveitei as paradas para rever minhas lutas e estudar as adversárias. Na correria do dia a dia isso não seria possível”, explica.
Colega de modalidade de Alana e com duas medalhas paralímpicas de prata (Londres em 2012 e Rio em 2016), Lúcia Araújo, 40, também tirou lição da pandemia, já que nos períodos de treinos sobrava pouco tempo para ficar em casa e acompanhar a vida escolar da filha Ana Clara, de 13 anos. “Como eu e meu marido não enxergamos, não conseguíamos ajudar nossa filha nas tarefas de casa, e isso sempre gerava desgaste”, diz. Com mais tempo em casa, a convivência melhorou 100%.
Veterana da delegação, a nadadora Susana Schnarndorf Ribeiro, 53, descobriu aos 37 anos uma doença degenerativa incurável chamada atrofia de múltiplos sistemas. Prata nos Jogos do Rio há cinco anos, a atleta viu sua saúde piorar de lá para cá. “Não tem muito o que fazer, mas com o treino o avanço da doença é menor. Se eu não nadasse, já teria morrido. Com três ou quatro anos do diagnóstico a pessoa normalmente para de respirar sozinha”, diz Susana, que pratica esportes desde criança e tem duas lições para passar. A primeira é de que sua vida gera esperança para pessoas que têm doenças difíceis. A segunda lição: “Entre nós não há coitadinhos. Somos atletas de alto rendimento. Não há melancolia entre os atletas e treinadores. Também não vemos deficiência, mas eficiência”.
A eficiência também faz parte do vocabulário e da vida do corredor Vinícius Rodrigues, 26, que em 2019 quebrou o recorde mundial dos 100 metros rasos da classe T63, com um tempo de 11s95. Seis anos antes ele sofrera um acidente de moto em Maringá, no Paraná, onde nasceu, que mudou para sempre a sua vida.
“Não desanimei em nenhum momento, não tive tempo para ficar deprimido. Logo estava andando com a prótese e depois para correr foi outro pulo”, conta o atleta, que se diz hiperativo desde criança. “Você acredita que minha vida melhorou depois do acidente? Eu nunca tinha saído do Brasil e hoje vou representar meu país no Japão. Já fui para Argentina, Alemanha, Dubai, França, Portugal.” O próximo passo, depois de Tóquio, é aumentar sua participação em um projeto voltado para angariar próteses para pessoas amputadas. Enquanto uma turma se prepara para competir, outra vem se desdobrando há cinco anos para prover e promover o esporte paralímpico.
Presidente do comitê nacional, Mizael Conrado precisou montar uma operação de guerra para viabilizar passagem e estada para 433 integrantes da delegação, entre esportistas e profissionais. Enquanto está com a cabeça no Japão, precisa se voltar também para quem ficou no Brasil. “O Centro Paraolímpico Brasileiro (às margens da Rodovia dos Imigrantes) é um grande instrumento não só para o alto rendimento, mas também para a formação.” Ali, setecentas crianças são atendidas no período fora da escola. “Nossa meta é brigar com a China e nos tornar uma potência até 2040.”
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Sempre ao seu lado
A corredora Lorena Spoladore, 25, não vive sem Renato Oliveira. Não apenas pela função dele, de ser atleta-guia, mas pela relação de ambos. “Temos total afinidade, somos padrinhos de casamento um do outro. A nossa sintonia é muito grande e nossos objetivos são os mesmos.” Os guias, que precisam estar tão bem preparados quanto os atletas, no fim também são recompensados com medalhas, em caso de vitória. Mas só na corrida. “No salto em distância ele é classificado apenas como auxiliar, o que eu acho injusto. Ele fica ao lado da tábua de impulsão e me avisa quando eu devo saltar. Ele fica na minha frente e só sai no último instante, na hora do pulo.”
Procura-se Vladimir
“Nasci com paralisia cerebral, em 1989, em Garanhuns, em Pernambuco. Em 2007, já em São Paulo, um professor de educação física da escola estadual Professor Messias Freire, no Jardim Rosana, me apresentou a bocha adaptada. Eu só sei o primeiro nome dele. É Vladimir ou Waldemir. Em um primeiro momento eu detestei e deixei para lá. Na faculdade de publicidade, outra professora também me apresentou a bocha, eu também detestei, mas minha mãe insistiu e eu fui conhecer o pessoal. Todos me acolheram e minha vida mudou. Eu nunca quis me enturmar com outras pessoas com deficiência e agora eu vou para o Japão. Queria agradecer ao primeiro professor, mas ninguém se lembra dele. Só sabemos que era de Santos.” Evani Calado, atleta paralímpica. Procurada, a Secretaria Estadual da Educação está tentando localizar o professor, mas ainda não o encontrou.
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Publicado em VEJA São Paulo de 25 de agosto de 2021, edição nº 2752