Constato: não há mais meninos de calças curtas. Eles usam calças compridas desde o início da vida bípede; os homens adultos é que usam calças curtas quando não estão no escritório.
As meninas estão entrando mais cedo na adolescência e os meninos mais tarde. Suspeito que para eles faltem indicações externas, falta daquilo que os estudiosos do comportamento humano chamavam de rituais de passagem. Agora os garotos começam a beijar muito mais cedo e a trabalhar muito mais tarde. Bagunçou. O beijo precoce, em idade ainda lúdica, não tem aquele poder de movimentar hormônios, é brincadeira de criança, não sei se ajuda a crescer.
Uma das indicações mais importantes de que alguma coisa estava mudando na vida dos meninos eram as calças compridas, e com elas algumas responsabilidades. Chegava uma época em que mãe e pai conferenciavam e decidiam: já está na hora de o menino usar calças compridas. Mais ou menos na mesma época em que ele começava a mudar de voz. Havia como que um cerimonial em torno disso, desde a compra da calça comprida até a saída à rua. Daqui a alguns anos, quando um leitor encontrar no meio de um texto uma frase como “Fulano era ainda um menino de calças curtas”, não vai saber do que se trata.
Pois era isso: a partir de certa idade, na época do aparecimento de pelos mais grossos e fartos pelo corpo, tomava-se o cuidado de cobrir as pernas masculinas. E elas permaneciam cobertas até o fim da vida. É de supor que a sociedade as considerasse feias, ou não as cobriria. Escoteiros eram olhados como meninões sem autocrítica, a exibir pelos, joelhões e batatonas de pernas. Os ingleses, povo meio esquisito, usavam aquelas calças curtas na Índia. Os escoceses, também peculiares, digamos assim, utilizavam saiotes nos dias de festa. Eram exceções, e distantes de nós.
As mulheres eram treinadas na discrição. Podiam opinar somente sobre aspectos mais delicados, como a beleza do rosto dos atores, da voz dos cantores e locutores. Os homens tinham de ser avaliados por critérios genéricos e fluidos como caráter, masculinidade, segurança. Quando levadas a particularizar um pouco mais suas preferências, as mulheres falavam de altos ou médios, gordos ou magros, louros ou morenos, com bigodes ou sem bigodes, com barba ou sem barba.
Agora não. Agora falam sem pejo do corpo dos homens, na base do vamos por partes.
Talvez elas já o apreciassem em silêncio. Por que começaram a falar abertamente do assunto de uns anos para cá? Um dos primeiros a jogar o tema na praça nacional foi Fernando Gabeira, num conto que publicou em 1979, logo que voltou do exílio. Falava de um homem sul-americano que ficava intrigado porque a namorada europeia dizia que gostava do traseiro dele. Nos anos 70, os homens não sabiam exatamente o que seduzia as mulheres. Abafadas, elas disfarçaram por muito tempo sua mirada.
Na década de 80, uma revista já elegia, com o voto delas, as pernas do goleiro Leão como as melhores do país. Homens comuns passaram a modelar as suas, a moda masculina começou a autorizar a exibição de pernas. Shorts migraram do litoral para os parques urbanos, avenidas, pistas de jogging, e logo, no estilo “bermuda social”, invadiram festas, almoços ao ar livre, bares, restaurantes sabatinos. Os homens conquistaram definitivamente o direito de exibir pernas fora das praias, como as moças faziam desde os anos 60 com suas minissaias e shortinhos. O que era tosco, feio, mal-acabado e grosseiro adquiriu status de atração sensual.
Ficamos devendo às mulheres mais essa pequena liberdade. Logo que chegaram aos postos de decisão na sociedade, elas passaram a ditar não só o que queriam mostrar, mas também o que queriam ver.