Irmãos Gullane expandem produtora audiovisual e preparam grandes estreias
A empresa celebra ‘grande ano’ com lançamento de ‘Motel Destino’, série de Ayrton Senna e documentário de Milton Nascimento
É um caso raro na história do cinema nacional. Dois irmãos, filhos de educadores, lançaram-se por conta própria no mercado cinematográfico e consolidaram-se como fundadores de uma das maiores produtoras brasileiras de audiovisual. Fabiano e Caio Gullane, 53 e 51 anos, acumulam no currículo créditos em mais de sessenta filmes, quarenta séries e vinte documentários.
Entre os destaques estão Carandiru (2003), de Hector Babenco, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hamburger, Que Horas Ela Volta? (2015), de Anna Muylaert, e Bingo: o Rei das Manhãs (2017), de Daniel Rezende.
A produtora que leva o nome da família celebra as conquistas deste ano. Em 2024, inauguraram um novo ciclo da empresa com a formalização de um conselho administrativo e um departamento intitulado Gullane+, destinado à distribuição de obras brasileiras país afora.
E, nos próximos meses, lançam Motel Destino (2024), de Karim Aïnouz, que estreou no Festival de Cannes como concorrente à Palma de Ouro, um documentário sobre Milton Nascimento, uma série sobre Ayrton Senna, na Netflix, e a animação Arca de Noé, inspirada no álbum homônimo de Vinicius de Moraes (leia mais ao fim do texto).
“Estamos considerando este como o grande ano da produtora”, afirma Fabiano. “É especial, pois celebra nossa trajetória e parcerias”, acrescenta Caio.
Este é o ano também do início das gravações do novo longa de Cao Hamburger no segundo semestre. O projeto será baseado na história real de uma escola em Heliópolis. Escrito por Thayna Mantesso, Cao e Tom Hamburger, Escola sem Muros vai falar sobre a importância da educação para transformar a vida dos alunos e da comunidade em volta. No momento, está em fase de formação de elenco e equipe.
O sucesso não aconteceu da noite para o dia. Antes mesmo da produtora existir, a dupla ganhou experiência e construiu seu nome.
Criados no bairro da Vila Mariana por professores, eles viviam imersos nas artes e no entretenimento desde pequenos. “Íamos ao cinema todo sábado”, conta Fabiano. Com a morte prematura do pai, ainda na infância, tiveram de adquirir maturidade cedo. Saíram de casa perto de completarem 18 anos de idade e foram cursar cinema na Faap.
Apesar do sucesso atual, Caio brinca: “Escolher o cinema naquela época foi uma irresponsabilidade. Era uma terra arrasada”. A cena era: meados dos anos 1990, Fernando Collor havia acabado de extinguir as políticas de fomento ao setor.
Na faculdade, criaram laços que perduram até hoje, como a amizade com a cineasta Laís Bodanzky. “Fomos construindo junto com o setor. Se um era chamado para uma produção, convidava o outro para participar também, e vice-versa”, conta Fabiano. “O Caio sempre mais performático, eu com uma câmera na mão.”
Os dois viabilizaram cerca de vinte curtas e alguns documentários. Após o lançamento de Cartão Vermelho (1994), Laís convocou “os meninos” para produzir Bicho de Sete Cabeças (2001), mas dessa vez com a assinatura própria de uma produtora. O CNPJ foi oficializado em 1996.
“Desde então, não desgrudamos”, comenta Laís. “Eles sempre me deram toda a liberdade para criar, além de estarem sempre disponíveis. Para uma diretora, faz toda a diferença. Lembro de ligar em certas ocasiões e chorar para eles ao telefone por causa dos problemas de alguma produção. Além de excelentes produtores, virara grandes amigos.” A cineasta observa uma sintonia entre os dois e descreve-os como competentes e generosos.
O intuito da Gullane sempre foi “dedicar à comercialização das obras a mesma energia da produção”, descreve Fabiano. “Estamos prontos para qualquer projeto. Você inventa, a Gullane vai atrás”, comenta Caio.
A escolha do sobrenome da família não veio de cara. Em um primeiro momento, os dois consideraram nomear a empresa em homenagem à cidade do pai, Bargi, na Itália, mas tiveram a ajuda especial de um padrinho, o cineasta Carlos Reichenbach (1945-2012), para chancelar. “Ele falou: ‘Vocês são irmãos. Todo mundo chama de irmãos Gullane. Põe Gullane’”, conta Caio, imitando a voz grave do diretor.
A empresa teve sua primeira sede na sala de uma casa na Vila Mariana. Havia apenas quatro mesas, uma para cada irmão e as outras para visitas. Depois, aumentou para a casa inteira. Com o tempo, ocupou quase todas as seis construções da vila. Hoje, toma conta de um edifício de quatro pavimentos na Vila Leopoldina, com um puxadinho de dois andares nos fundos.
Enquanto Fabiano cuidava da busca por recursos, Caio pesquisava locações, participava de testes com o elenco e batia ponto no set para resolver problemas de última hora. Esse contato direto com as gravações rendeu grandes histórias.
Uma delas foi a filmagem de Carandiru, que pôde ser realizada no Pavilhão 2 do extinto presídio, com a autorização do então governador Geraldo Alckmin, enquanto as outras alas estavam em funcionamento. “É raro passar em uma rua da cidade e não ter filmado lá”, afirma Caio.
O envolvimento e companheirismo dos dois nas produções permanece, mas agora em uma posição executiva. Eles se tornaram pais e buscam equilibrar a liderança da Gullane com a paternidade. A essência familiar persiste. “Eles continuam aqueles mesmos dois garotos da faculdade de cinema”, analisa Danilo, o irmão mais novo, de
48 anos. “Sempre fomos muito próximos, são grandes exemplos para mim.”
Formado em Letras, ele deixou a carreira acadêmica de lado e foi “seduzido” pelo fazer cinematográfico com a sua proximidade da Gullane. Atualmente, coordena o departamento de documentários, prospecção de projetos e desenvolvimento com talentos.
Há ainda outros dois sócios da Gullane: Debora Ivanov e André Novis. “Fabiano e Caio têm uma paixão pelo cinema e uma alegria contagiante”, diz Debora, à frente da Gullane+ e do conselho de administração. “São duas pessoas muito criativas, que você quer ter como amigos.”
Junto do trabalho dos Gullane, o setor também amadureceu. “O momento hoje não poderia ser melhor”, acrescenta Debora. “Somos filhos da política pública. A Gullane começou pequenininha, lá nos anos 90.” Desde então, houve a criação da Ancine, do fundo setorial e de leis de incentivo.
Fabiano aposta: “Em breve, vamos viver o melhor momento da indústria audiovisual brasileira”. Os motivos são o conjunto de políticas públicas favoráveis, o trabalho em parceria com grandes players e a discussão no Congresso para a regulação da operação das plataformas.
Apostar em novos talentos em uma hora oportuna segue sendo uma veia da Gullane. “Nós nos conhecemos quando eu era montador, e eles foram os primeiros produtores que realmente quiseram investir em mim como diretor”, conta Daniel Rezende, diretor de Bingo. “Sempre senti deles um respeito muito grande comigo e outros diretores. Dá para ver no olho como eles amam audiovisual.” Além de colegas de trabalho, tornaram-se amigos.
Os dois irmãos põem em perspectiva essa trajetória como o processo de realização de um filme, um trabalho coletivo, que demanda profissionais diversos. Caio resume: “É uma empresa familiar, que construiu uma família”.
Projetos do ano
Motel Destino
Thriller erótico do diretor cearense Karim Aïnouz, que concorreu na competição oficial do Festival de Cannes e foi filmado inteiramente no Ceará. Estrelado por Iago Xavier, Nataly Rocha e Fabio Assunção, o longa acompanha um estabelecimento de beira de estrada que vira palco de jogos de desejo e poder quando se cruzam os caminhos de um jovem rapaz, recém-saído de uma instituição socioeducativa, e uma mulher aprisionada em um relacionamento abusivo.
A Gullane já vendeu o filme para quase vinte países. Estreia em 22 de agosto no Brasil.
Milton Bituca Nascimento
Depois da turnê de despedida do artista carioca em 2022, a diretora Flávia Moraes juntou-se ao filho de Milton, Augusto, e ao produtor musical Victor Pozas para pensar em um documentário musical e homenagear o ícone da música brasileira em vida.
A ideia é mostrar para o Brasil e o mundo o tamanho de Milton fora do país. Tem previsão de estreia para o segundo semestre. A Gullane produziu em 2020 uma série sobre o Bituca, disponível no Globoplay
Senna
A série protagonizada por Gabriel Leone, sobre a vida do ídolo da Fórmula 1, vai estrear na Netflix até o fim do ano. É um dos grandes destaques da Gullane, pela proporção do lançamento e pela força mundial do personagem. Fabiano afirma que se trata da maior série da plataforma feita no Brasil, do ponto de vista de investimento e alcance.
Foi dirigida por Vicente Amorim, codirigida por Júlia Rezende e filmada em quatro países. Para os irmãos, a empreitada chega para selar os esforços de internacionalizar as produções brasileiras. O desejo de contar a história de Senna é antigo e já foi concretizado na animação Senninha.
Arca de Noé
“É a animação brasileira mais ambiciosa da história”, define Fabiano. A inspiração veio do álbum de canções infantis lançado pelo poeta e compositor Vinicius de Moraes em 1980. A animação 3D, com coprodução da Índia e em parceria com VideoFilmes e Globo Filmes no Brasil, conta a história de ratinhos que se aventuram para salvar o mundo.
Reúne gravações inéditas de Adriana Calcanhotto, Chico César e mais. O elenco de dubladores é protagonizado por Rodrigo Santoro, Alice Braga e Marcelo Adnet e traz também Ingrid Guimarães, Lázaro Ramos, Heloisa Périssé e Bruno Gagliasso. Já foi vendida para setenta países e será lançada em novembro.
Publicado em VEJA São Paulo de 12 de julho de 2024, edição nº 2901