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‘Nunca tive tanta vontade de filmar no Brasil’, afirma Karim Aïnouz

Diretor cearense celebra a estreia de ‘Motel Destino’, prepara novos projetos e se reconcilia profissionalmente com o seu país

Por Mattheus Goto
16 ago 2024, 06h00
Do Brasil ao Japão: próximas produções de Karim Aïnouz
Do Brasil ao Japão: próximas produções de Karim Aïnouz (Bob Wolfenson/Divulgação)
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Há quem diga que o destino tinha grandes planos para Karim Aïnouz em 2024. Em maio, o diretor cearense de 58 anos retornou ao Festival de Cannes para representar o Brasil, concorrendo à Palma de Ouro com Motel Destino.

O filme acompanha a saída de Heraldo (Iago Xavier) de uma instituição socioeducativa onde cumpria pena. Na mira do crime, o jovem se esconde no estabelecimento que dá nome ao longa. O lugar pertence ao casal Dayana (Nataly Rocha) e Elias (Fabio Assunção), que é abusivo com a esposa.

Surge um triângulo amoroso inesperado e intenso, e Heraldo e Dayana se apaixonam na busca de um novo rumo para a vida. Depois de meses de espera, a produção estreia na próxima quinta (22) em todo o país.

Além do lançamento, o cineasta trabalha em diversos outros projetos paralelos. Um deles é Rosebushpruning, adaptação de De Punhos Cerrados (1965), primeiro filme do italiano Marco Bellocchio, com produção em Barcelona — de onde o cineasta conversou com a Vejinha.

Quando surgiu a ideia de Motel Destino?

Esse filme vem do fruto do trabalho que tenho realizado no Ceará com uma escola de roteiro, a Lab Cena 15, desde 2013. Também vem do desejo de fazer um cinema autoral, mas com ambição comercial. Fiz uma pesquisa grande de público e vi uma demanda pelo gênero policial, que geralmente se liga à TV, e fiquei muito tentado a fazer no cinema.

Que retrato o longa faz do Brasil?

Quando comecei a estudar cinema, muitos anos atrás, a primeira matéria que fiz foi cinema noir. Eu me lembro do quanto fiquei encantado, porque vem do crime fiction, mas se transforma num objeto cinematográfico muito sofisticado e rico. É dos anos 40 aos 50 e poucos, de um mundo muito fraturado, do pós-guerra. O filme ficou muito preciso por conta do momento em que foi gravado, em 2023, no “pós-guerra do Brasil”, depois dos anos do governo fascista, que foram anos de massacre junto com a pandemia. Quando fui fazer o filme, era um país completamente largado, que estava se recuperando. Também fui muito inspirado pelas pornochanchadas. Durante a ditadura, em que não se podia falar de política, a gente falava por meio dessas comédias pornográficas. Me interessa muito poder fazer um filme que pega o espectador nesse sentido quase físico mesmo, mas que está falando de temas maiores.

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Que reflexão a obra faz sobre sexo?

O que sobrou para aqueles personagens (Heraldo e Dayana) foi o corpo deles. Eles são meio desprovidos de tudo. Em última instância, é um filme sobre solidariedade. Um se agarra ao outro para poder vencer o Elias, a opressão simbolizada por esse personagem. Tem algo de febril no encontro dos dois, muito forte.

Que visão tem sobre sexo no cinema?

Eu tinha uma vontade um pouco mal comportada de colocar sexo como uma possibilidade de fusão amorosa e não ter vergonha disso. Quando coloco na tela, não é porque é só o sexo, é porque é lindo o encontro de duas pessoas, e não me digam que não posso fazer isso. A sensação que eu tinha era que, nos últimos anos, a gente ficava com umas pautas políticas que pareciam ser contrárias. O sexo vem como desejo de fazer um filme libertário. O corpo é um elemento muito importante no cinema. Renunciar ao corpo me parece algo politicamente duvidoso.

Como foi a experiência em Cannes?

Fiquei muito emocionado com a recepção neste ano, com a acolhida do público depois da sessão. E fiquei feliz de poder ir com esses três atores, em especial a Nataly e o Iago. Era como se eu estivesse levando para Cannes um pedaço do Ceará. Um lugar que nunca esteve na competição. Foi muito especial ter colocado meu estado no mapa.

“Era como se eu estivesse levando para Cannes um pedaço do Ceará. Um lugar que nunca esteve na competição. Foi muito especial ter colocado meu estado no mapa”

Karim Aïnouz
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Você chegou a dizer que achava que nunca mais faria filmes no Brasil. Por quê? Isso mudou?

Foi num momento em que achava que não ia ter mais Brasil, então não ia ter mais filmes no Brasil. Em 2016, tudo começou a derrapar. Em 2018, a sensação era que não tinha cinema autoral. Todos os meus projetos foram cancelados. Fui fazer um filme na Argélia, em 2019, e depois na Inglaterra. É engraçado porque agora estou fazendo esse filme aqui fora (Rosebushpruning). Mandei mensagem hoje de manhã para minha sócia, falando que quero filmar no Brasil. Agora só penso nisso. Me dei conta de que a única gravação que tinha feito no Ceará foi um meio filme, Praia do Futuro (2014), que fiz metade na Alemanha. Foi como se tivesse vivido um exílio forçado e pudesse voltar para casa. Estou com um monte de ideias. Nunca tive tanta vontade de filmar no Brasil e contar a história da gente. Gosto de filmar fora, mas por que não fazer tudo? Estou num momento superapaixonado.

Cinco filmes de diretores cearenses estreiam neste mês. O que essa presença representa para o cinema?

É uma espécie de recorde. Nada acontece de um dia para o outro. Existe um fomento no Ceará há quinze anos. Hoje, Fortaleza tem cinco escolas de cinema. Na minha época, era metade de uma. É maravilhoso, mas não é surpreendente. Faz muito sentido. É um estado que investiu não só no audiovisual, mas na educação em geral. Na hora que a gente investe em educação, demora, mas os frutos são gigantes.

Que outros projetos estão em vista?

Estou fazendo agora o Rosebushpruning. No ano que vem, vou para o Japão fazer um filme sobre a imigração Brasil-Japão, uma história de amor em Tóquio. Estou preparando uma trilogia, com dois derivados de Motel Destino, um faroeste (intitulado Trevo de Quatro Navalhas) e outro de vingança (Lana Jaguaribe), com os mesmos personagens. E estou querendo produzir ou dirigir uma série sobre Motel Destino. Em uma temporada, com histórias de terror, e na outra, de amor, mas se passando ali no motel.

Como se sente ao receber todo o reconhecimento?

Na minha juventude, a gente do Ceará, Piauí e Maranhão era tratado como subhumano. Quando comecei a fazer cinema, ninguém acreditava que eu ia conseguir, que a minha geração ia conseguir. Tem cineasta americano que fala que ganhou uma Super 8 do pai quando pequeno. Não existia isso para a gente. Fiquei muito feliz de ter provado que sabemos fazer esse ofício com muita honra e louvor. É uma sensação boa, de que tudo valeu a pena.

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Publicado em VEJA São Paulo de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906

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